Caça. O massacre que veio de Espanha

Empresa que organizou montaria na Azambuja, onde morreram 540 veados, gamos e javalis, tem 25 anos e está sediada em Badajoz, Espanha. Saiba como os espanhóis lucram com este tipo de eventos em Portugal.

Organizaram uma montaria na Herdade da Torre Bela, na Azambuja, que culminou na morte de 540 javalis, gamos e veados, na semana passada, e a polémica instalou-se. Fundada há 25 anos por um casal universitário espanhol com a paixão da caça em comum, a empresa que liderou esta montaria tem sede em Badajoz, Espanha, e chama-se Monteros de la Cabra. Mariano Morales, advogado, e Virginia Rodríguez, engenheira, são os anfitriões. Segundo o Nascer do SOL conseguiu apurar, organizam montarias em Portugal, Espanha e França, mas não é habitual contratarem caçadores portugueses, apesar de a sociedade que é detentora da concessão desta zona de caça, na Azambuja, ser portuguesa – poderá estar relacionada com alguém ligado à empresária Isabel dos Santos.

O casal que liderou esta montaria, porém, vê-se agora mergulhado numa polémica, depois de terem sido publicadas fotografias – entretanto apagadas – de caçadores junto dos corpos de centenas de veados e javalis abatidos na herdade ribatejana. O alarme soou de imediato e as reações surgiram. Em declarações a este semanário, o presidente da Federação Portuguesa de Caça (Fencaça), Jacinto Amaro, sublinhou que foi tudo mal feito por parte dos espanhóis, tendo em conta que queriam dar lugar a um parque de painéis fotovoltaicos.

«Repudio completamente o que aconteceu e a forma como foi feito. Foi mau do princípio ao fim. Percebe-se perfeitamente que quem vai instalar um parque de painéis fotovoltaicos precisa de retirar animais de lá. Agora, fizeram-no da pior forma», começou por dizer, adiantando que quem organizou esta montaria tinha o objetivo de «proceder ao abate coletivo» e «ir mandando para o mercado da carne».

«Todo o processo foi mal feito. Criar 500 veados e javalis é a mesma coisa que criar 500 ovelhas. Mas a carne é de melhor qualidade e é vendida. E quiseram ser mais papistas do que o papa, ganhando também com os caçadores que lá foram fazer aquilo em dois dias. Porque aquilo que fizeram não foi caçar», sublinhou, aludindo ao facto de os 16 caçadores que lá estiveram terem pagado três mil euros para matar os 540 animais. «Que eu tenha conhecimento, nenhum caçador português esteve envolvido neste abate», garantiu.

O Governo já anunciou, por seu turno, o cancelamento da licença de caça turística à Herdade da Torre Bela, avançando com uma queixa no Ministério Público por indícios de crime contra a preservação da fauna, O Ministério do Ambiente revelou ainda que, no início do próximo ano, vai convocar o Conselho Nacional da Caça para se realizar uma reflexão sobre a prática de montarias em Portugal.

A Associação Nacional de Proprietários Rurais (ANPC) e a Confederação Nacional dos Caçadores Portugueses (CNCP) dizem repudiar também a morte dos 540 animais no concelho da Azambuja, lamentando profundamente a forma como os organizadores vieram para as redes sociais vangloriar-se deste abate massivo.

O lucro dos espanhóis

Espanha é detentora de um dos maiores mercados comerciais de caça da Europa. E são os espanhóis que, neste setor, aproveitam toda a «mais-valia» que é criada em Portugal. Dos milhares de javalis e veados que se matam em Portugal, 95% são os espanhóis que compram, alertou Jacinto Amaro.

«É carne de extrema qualidade. São eles que inundam o mercado europeu e internacional. Em Espanha e em França há pessoas que, em vez de criarem porcos ibéricos, criam javalis e veados. Em Portugal há muito pouco disso, mas em Espanha há muito. É um mercado extremamente competitivo, com a criação de animais de caça dentro de uma propriedade com rede. E depois fazem as suas montarias. Os caçadores pagam bem por causa do troféu, que são os cornos do veado e os dentes dos javalis. E depois vendem a carne garantidamente. Quem ganha com isto tudo são os espanhóis. Têm uma rede enorme e metem no mercado», confessou.

Revisão da lei da caça?

Na sequência das mortes destes animais, o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, falou da possibilidade de se alterar a lei da caça, reforçando que aquele ato foi «vil e ignóbil».

«De acordo com a lei, não têm de ser comunicadas ao ICNF [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas] as caçadas e as montarias. Esse é, de facto, um erro que, para ser corrigido, obriga a uma mudança da lei a partir da qual esses atos sejam comunicados», disse o ministro. No entanto, esta proposta não agradou a todos. Opresidente da Fencaça, por exemplo, garantiu a este jornal que esta medida «não tem pés nem cabeça».

«Isto parece-me aquele caso do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) – extinguir-se o SEF e dizer cobras e lagartos, quando antes diziam que era bom. Houve três criminosos que fizeram aquilo ao ucraniano e, por isso, querem logo acabar com a corporação. Houve um canil que se incendiou em Santo Tirso, em julho, e queriam logo mudar tudo. Disseram logo que vamos acabar com tudo», começou por referir, salientando ainda o facto de o ICNF, no caso da caça, não ter capacidade para fazer a devida fiscalização nem para formar ou investigar.

«Infelizmente, está sem pessoal e sem meios. Tanto dinheiro que os caçadores apostam para o ICNF, nas licenças de caça, nas taxas das zonas de caça que pagam ao Estado. O ministro do Ambiente, em vez de perceber o que se passa no mundo rural, como tudo tem de ser enquadrado na agricultura mais amiga do ambiente, pecuária e floresta, coloca a possibilidade de alterar a lei da caça. O ministro não tem noção nenhuma do que é o campo. É ignorante. É preciso falar com os agricultores e perceber realmente o que acontece lá», atirou Jacinto Amaro.

Quem tem carta e licença de caçador

De acordo com os últimos dados divulgados pelo ICNF, que remontam a 31 de maio deste ano, residem em Portugal continental 241 291 cidadãos titulares de carta de caçador. Já no que diz respeito às licenças, foram registadas 117 436 na época de 2019/20. O distrito com maior licenciamento foi Lisboa, com 14 323 licenças, e com menor foi Portalegre, com 3619.