2020 para a História

Passado o ruído, separado o trigo do joio, o que dirão os livros sobre o ano que agora termina? Há algum ano que lhe seja comparável? Convidámos quatro personalidades a refletir sobre como 2020 será visto pela História.

Rui Correia, professor de História

A luminosa frigidez da História

Estima-se que, desde que o homem é Sapiens, tenham nascido neste planeta 108 biliões de pessoas. Pergunta: quantas destas pessoas chegaram aos livros de História? Há uns dias dei-me ao trabalho de as ir contar. Nos manuais de História, do 7.º ao 9.º ano, que contam toda a aventura da humanidade, vivem 153 pessoas. Tudo o mais, todas as outras vidas, não passam de sustento para académicos. Quando nos perguntamos sobre o que ficará de 2020 para a História, nomeadamente esta pandemia que, cito, ‘abalou as fundações de toda a comunidade humana’, creio bem que, dentro de cem anos, reste nos manuais tanto quanto ficou da última grande pandemia. Ou seja, nada. E a pneumónica de há cem anos matou dezenas de milhões de pessoas; só em Portugal foram 136 mil. Entretanto, nos manuais, o silêncio. Como pode isto ser? De onde vem esta frigidez da História? Compete-me, como professor de História, recordar que a segunda década deste século termina este ano e não no ano passado, altura em que tantos fizeram o seu ‘balanço’. Na realidade, a História está-se nas tintas para as ‘décadas’ e para os ‘balanços’. Ela vive do que permanece, daquilo que nasce para demorar. Não ficaria surpreendido se, de tudo quanto vivemos, venha a restar apenas esta desenfreada vulnerabilidade global aos cataclismos pandémicos. Sabendo o que sei dela, é bem provável que a História venha a interessar-se, não com aquilo que a doença nos fez, mas com o que fizemos à doença. Partindo e repartindo, deste gritante fracasso, talvez o tempo, essa perpétua criança, queira apenas guardar para si a melhor parte: o caminho dominador e triunfante da Ciência. De costas voltadas para a luz, será de luz que falarão os nossos bisnetos.

 

Carlos Fiolhais, físico
Como será lembrado 2020?

2020 será lembrado como o ano da pandemia que causou mais de 1,9 milhões de mortos em todo o mundo. Pode comparar-se com a ‘gripe espanhola’ de 1918-1919, que causou mais de 50 milhões de mortos, num mundo com muito menos habitantes? Sim, em ambas ocorreram crises sanitárias e económicas. Mas prefiro bem mais viver agora do que há cem anos: os meus bisavós paternos morreram sem ajuda nessa época. Nem se conhecia o responsável pela doença, nem havia vacina. Hoje não só conhecemos o vírus que nos assola como dispomos de vacinas inovadoras desenvolvidas em tempo recorde. O ano de 2020 será lembrado como o ano das novas vacinas.

A vida vai recuperar após 2020-2021 tal como recuperou após 1918-1919. Os anos 20 do século passado foram os ‘anos loucos’, com um boom económico-social bem patente na circulação automóvel, na invenção do cinema sonoro, na explosão da dança, do jazz e da moda, etc. Vamos ultrapassar o trauma de 2020 mais rapidamente do que ultrapassámos o de 1918. É possível que haja novo boom, desta vez de base biotecnológica e digital. A saúde disporá de novos meios proporcionados pela ciência. E o digital continuará a tomar conta do mundo. Nas profissões, haverá uma revolução com o teletrabalho. Os smartphones serão cada vez mais smart, tornando-se indispensáveis para tudo, da monitorização da saúde às transacções. A inteligência artificial tornar-se-á omnipresente. A arte e a cultura em geral ressurgirão porque são indispensáveis à vida.

 

Maria Filomena Mónica, socióloga
De como a História olhará para 2020

Uma das mais dramáticas crises sanitárias que o Portugal Moderno conheceu foi a peste bubónica que, em 1899, infectou o Porto, tendo levado à declaração de uma inédita ‘cerca sanitária’. Tratou-se de uma epidemia, não de uma pandemia e, talvez por isso, a História, mas não o Porto, a esqueceu. Quando, em nome da «defesa do Reino», o governo de José Luciano decretou que ninguém pudesse entrar ou sair daquela cidade, os tripeiros decidiram, como de costume, que o inimigo era Lisboa. Ameaçado de morte sempre que saía à rua, o médico Ricardo Jorge teve de andar acompanhado por uma escolta policial, até que decidiu trocar o Norte por Lisboa, onde criou a Direcção-Geral da Saúde.

Passadas algumas décadas, surgiu uma nova crise sanitária, desta vez uma pandemia, ou seja, uma crise mundial. A ‘gripe espanhola’, como incorrectamente foi designada, durou de Janeiro de 1918 a Dezembro de 1920. Tendo surgido na sequência da I Grande Guerra, matou milhões de pessoas, incluindo dois dos ‘pastorinhos de Fátima’.

Se nos salvarmos todos – e é um ‘se’ – a História lembrar-se-á da actual crise sanitária não só pelo relevo que nela teve a Ciência mas pelas fotografias de cidades desertas, de multidões usando máscaras e de alguns discursos abjectos, nomeadamente os do ex-Presidente Trump. Tudo isto dito, também pode ser que nem haja futuro para que os historiadores – que claro também desapareceram – possam escrever sobre o ano de 2020.

 

João Paulo Oliveira e Costa, historiador
O ano em que a humanidade despertou para a sua fragilidade

2020 será, sem dúvida, um ano que ficará gravado na memória da humanidade por muito tempo. A pandemia do SARS19 criou uma situação nunca vista, ao afectar e paralisar todas as sociedades em simultâneo. Num momento em que se discutia a emergência climática e os efeitos nefastos da poluição, apercebemo-nos de que outros perigos espreitam a nossa sociedade industrializada e viajada, que vivia na convicção de que o progresso seria interminável. A crise da gripe pneumónica, há um século, provocou milhões de mortes e teve uma expressão intercontinental, mas não teve o impacto social provocado por esta pandemia. Por isso, 2020 será recordado como um ano em que a humanidade despertou para a sua fragilidade, pelo risco de vir a ser atingida por outras pandemias mais letais e pelo facto de milhões de postos de trabalho poderem esfumar-se em menos de um mês, atirando pessoas que tinham uma vida desafogada quase para a indigência.

Espero, contudo, que 2020 seja também recordado como tendo sido o ano em que, apesar do comportamento grotesco de alguns líderes mundiais, a humanidade demonstrou a sua extraordinária inteligência colectiva. As imagens de hospitais europeus e norte-americanos em colapso, durante a primeira vaga, já não se repetiram nas vagas que se seguiram, as revistas científicas começaram cedo a partilhar informação, e a capacidade de produzir vacinas para um vírus desconhecido em menos de um ano e de desencadear um processo de vacinação maciça mostraram que há um lado bom nos seres humanos.