Três golos no mesmo pontapé

Barnabé Ferreyra e o seu pontapé furioso transformaram-se numa fonte de histórias do futebol argentino dos anos 30.

No tempo de Barnabé Ferreyra os jogadores não usavam números nas costas e, no entanto, ele era inconfundível. Dele, diziam respeitosamente: «Não é um homem. É uma fera!». O nome ficou: La Fiera. Carlos Gardel, o milongueiro de Mi Buenos Aires Querido quis conhecê-lo. No momento em que se encontraram, Gardel tirou o chapéu, reverente: «Então és tu, La Fiera…». Ao que Barnabé respondeu: «La Fiera eres usted cuando canta».

Tudo isto se passava num mundo distante, de cavalheiros e brutos, perdido por entre as brumas da memória. José Manuel Moreno Fernández, seu companheiro de equipa no River Plate, ficava do lado dos cavalheiros. E dizia a quem queria ouvi-lo: «Se Barnabé te apertar a mão podes ficar certo que terás a partir daí um amigo para sempre».

Barnabé Ferreyra nasceu no dia 12 de fevereiro de 1909. Era o mais novo de uma fileira de seis irmãos. Tinha o mesmo nome do pai, mas mal chegou a conhecê-lo: morreu quando o garoto tinha dois anos de idade. Ficou a cargo do seu irmão mais velho, Paulino, um tipo teimoso como um muar que decidiu que o caçula tinha tudo para ser um bom jogador de futebol. Obrigava-o a chutar bolas contra uma parede, cada vez com mais força, até Barnabé ficar exausto. La Fiera começava a vir ao mundo.

«Hoy que dios me deja de soñar/A mi olvido iré por santa fe/Sé que en nuestra esquina vos ya estás/Toda de tristeza, hasta los pies», cantava Amelita Baltar a música de Piazzolla. Santa Fe era a terra de Barnabé Ferreyra. Mais propriamente Rufino. Por isso também chamado de El Mortero de Rufino. Paulino insistiu sempre para que o irmão aproveitasse qualquer oportunidade que lhe surgisse. Aos 14 anos jogava num clube local, o Jorge Newberry. Aos 18 partiu para a aventura de Buenos Aires e tento a sua sorte num clube de Junín, dos arrabaldes da capital, o Buenos Aires & Pacific Railway.

No Newberry, Barnabé fez furor com os seus pontapés violentíssimos a despeito de ter pernas finas como um flamingo. Marcava golos atrás de golos e, nas bancadas, havia quem lhe atirasse chapéus para o campo, comemorando as suas faenas. Em Buenos Aires, depois de deixar os ferroviários, tentou a sorte no Talleres que, pura e simplesmente, desprezou a sua figura magricelas. Jogaria no Tigre a partir de 1929. Era um marrom, nome que se dava aos jogadores pseudo-amadores que, tendo um emprego oficial, recebiam bónus por parte dos clubes. Como pintor de casas ganhava 7 pesos mensais; com os golos que marcava pelo Tigre recebia 200.

No dia 13 de março de 1932, La Fiera entrou em campo com a camisola branca de risca diagonal do River Plate. Barnabé Ferreyra chegara ao mundo do grande futebol. A estreia deu-se frente ao Chacarita Juniors, o River ganhou por 3-1 e Ferreyra marcou dois golos. Uns meses antes tornara-se internacional pela Argentina. Os sete anos que se seguiram  foram dignos de uma explosão de estrelas e de cometas. Barnabé e o seu pontapé furioso levavam os hinchas ao êxtase. E os números não desmentiam a categoria do rapaz de_Santa Fe: em 185 jogos pelo River Plate marcou 187 golos e foi campeão argentino em 1932, 1936 e 1937. O jornal Crítica decidiu atribuir um prémio ao primeiro guarda-redes que defrontasse Barnabé e saísse do campo sem sofrer um golo dele. E então, o keeper Cándido de Nicola, do Huracán, ficou para a história do futebol argentino.

Com o passar do tempo, Barnabé Ferreyra começou a ganhar em seu redor uma aura que ultrapassou a sua já de si tão enorme fama. Entre exageros e invenções, entrou na lenda. Não que não o merecesse, era o que faltava. Muitos outros sem um terço da sua categoria viram as suas vidas transpostas para a literatura e para o cinema. Barnabé Ferreyra também teve direito a surgir na tela. Num filme que não teve um título muito simpático para ele – La Importancia de ser Ladron.

As lendas costumam escolher tempo e horas. E desfazê-los por via da comparação com a aborrecida realidade. Em 1931, contra o San Lorenzo, o Tigre ganhou por 3-2, depois de ter estado a perder por 0-2, com três golos de Barnabé em sete minutos, 29, 33 e 36 da segunda parte. Ele diria no fim do jogo: «As pessoas ficaram loucas quando marquei o golo do empate, mas quando marquei o terceiro golo foi tal a excitação que me caíram lágrimas de alegria». o jornal El Gráfico registou 10 mil espetadores, mas tantos foram aqueles que juraram a pés juntos terem assistido à proeza de Barnabé que o número se aproximou dos dois milhões.

Barnabé Ferreyra era um moço bem disposto e brincalhão que não se levava demasiado a sério. Anotava num caderno o nome dos adeptos que o abordavam na rua. O caderno ganhou a grossura de uma lista telefónica. Falavam-lhe o hat-trick ao San Lorenzo e ele comentava: «Dizem que marquei os golos em 5,4 ou 3 minutos e eu já cheguei à conclusão que os marquei todos no mesmo pontapé». E ria-se, como era seu hábito.

afonso.melo@newsplex.pt