“Estamos abandonados. Esperamos os voos humanitários”

Centenas de portugueses residentes em Portugal retidos no Brasil “desesperam” por voos de repatriamento. Governo ouviu os apelos, mudou de ideias e iniciou processo para ir buscá-los.

Há cada vez há mais relatos de pessoas desesperadas, devido à suspensão dos voos entre Brasil e Portugal – prorrogada até ao dia 1 de março pelo Governo português devido à pandemia –, que as mantém retidas no outro do Atlântico.

Mais de duas semanas após a interrupção das ligações, o Executivo de António Costa anunciou ter dado instruções à Embaixada e aos serviços consulares portugueses no Brasil para, a exemplo do ocorrido em março e abril de 2020, “começarem a identificar os casos em que, por razões humanitárias, era necessário apoiar o repatriamento das pessoas”. O anúncio foi feito ontem pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, no Parlamento, e vem contrariar as posições assumidas pelo Governo no início deste mês.

Petição despertou para o drama

Centenas de cidadãos residentes em Portugal mantêm as vidas suspensas. Este problema ganhou mais visibilidade depois de ser criada uma petição online que pede o “retorno de cidadãos portugueses e de residentes em Portugal retidos no estrangeiro” e que, à hora do fecho desta edição, já contava com 867 assinaturas. No total, são 167 as pessoas identificadas no documento que se encontram nesta situação.

A autora do abaixo-assinado é a brasileira Elaine Veloso, de 53 anos, natural de Brasília, mãe de Valentina Ruas, de 17, e casada com o português Jorge Costa, de 54. “Meu marido é cidadão português, eu também tenho nacionalidade, e estou com a documentação pronta para dar entrada com o pedido para a nacionalidade da menina”, começa por explicar ao i.

Jorge voou até ao Brasil no ano passado com o objetivo de dar andamento à mudança definitiva da família para Portugal. No entanto, a pandemia trocou-lhe as voltas e, atualmente, vive com a esposa e a enteada no apartamento de amigos.

“Os nossos bilhetes [pela companhia Azul Linhas Aéreas] eram para 7 de fevereiro quando veio o despacho que suspendeu os voos. A viagem foi remarcada para 17 de fevereiro”, avança Elaine. “Tivemos de nos desfazer dos nossos bens, da nossa casa, do carro, de tudo. Ficámos quase literalmente na rua, desabrigados, meu marido tendo retornar ao país para trabalhar e a menina para estudar”, esclarece.

“Tentamos ter resposta da Azul, mas é sempre tudo só por palavras, a dizer que temos de tentar rotas alternativas via Suíça e França”, desabafa a mulher, adicionando que considera este cenário “absurdo pelo preço dos bilhetes e também pelos riscos enormes, pela maior chance de ‘levar’ o vírus”. “Quero deixar claro que ninguém está a querer fazer turismo, só queremos voltar às nossas vidas”, remata.

A petição com 167 signatários foi ontem entregue no Consulado Português em Brasília. Segundo a lista a que o i teve acesso, 76 pessoas possuem bilhetes para voar pela TAP, 15 pela LATAM, 70 pela Azul e oito pela Air Europa (sendo que uma destas passageiras tem também um bilhete da Azul).

“Estamos perdendo nossos empregos, estamos longe de nossos familiares, são casais separados, pais separados de seus filhos e muitos de nós não têm mais recursos financeiros para permanecer no Brasil, gerando extremas dificuldades”, explica Elaine. “Nós nos submeteremos à testagem antes do embarque, se for necessário faremos novos testes em solo português, inclusive nos dispomos ao confinamento. Merecemos respeito e atenção por parte das autoridades portuguesas”, apela.

“Infelizmente o meu parente não faz nada por mim. Sim, porque o senhor primeiro-ministro António Costa é meu ‘irmão’, é português como eu, e não me estende a mão”, refere Jorge Costa com desânimo, salientando a importância das quase 200 pessoas que se uniram para partilhar informações e tentar resolver a questão junto do Consulado português. “Como é que se pode fechar a porta aos cidadãos? Todas as medidas de segurança têm de ser tomadas, é claro, mas onde ficam os direitos humanos? Estão a ser ignorados!”, afirma.

“Estamos desamparados, abandonados. A imprensa é o canal que temos. Se nos calarmos, como ficamos?”, questiona o português que exige uma resposta por parte da Embaixada e do Consulado através do movimento associado à petição: o #QueremosVoltarParaPortugal.

Na primeira carta endereçada às autoridades portuguesas no Brasil, assinada por Elaine, é possível ler que os cidadãos retidos no Brasil pretendem “uma resposta urgente”, para entender “quais providências estão tomando para a organização de tais voos, se já os organizaram e se já submeteram o seu reconhecimento aos serviços competentes da área governativa dos negócios estrangeiros e pelas autoridades competentes em matéria de aviação civil”.

“Estamos desesperados e acordamos, todos os dias, ansiosos. A minha enteada tem de ir para a faculdade, não pode perder o ano. A nossa vida está suspensa”, reconhece Jorge Costa que admite que o próprio Consulado português sugeriu “que o cidadão tente retornar por rotas alternativas, via França ou Suíça”.

Governo mudou de ideias

O Governo português tinha descartado oficialmente a possibilidade de realizar, nesta fase, voos de repatriamento desde o Brasil. As queixas dos cidadãos retidos em terras de Vera Cruz subiram de tom. E logo surgiram mais relatos idênticos aos de Jorge Costa, sugerindo que seriam as próprias autoridades consulares portuguesas no Brasil a propor que estas pessoas optassem, junto das “suas” companhias, por viajar através de rotas alternativas para se chegar a Portugal

“As rotas alternativas servem para tapar-nos os olhos. Fazem muitos tipos de asneira. Agora, com problemas mais sérios, é que se lembraram de confinar”, refere Jorge Costa, garantindo que, quando regressar Portugal, vai cumprir quarentena.

“A viagem deve ser apenas uma e já é um enorme risco que vamos correr, mas tenho de regressar ao meu país, não posso continuar nesta situação completamente insustentável”, confessa. “Esperamos os voos humanitários, de repatriamento”, pede Elaine ao seu lado.

Entretanto, os apelos de Elaine e Jorge foram ouvidos. Ontem, Augusto Santos Silva confirmou ter dado instruções para se iniciar o processo para “o repatriamento das pessoas”.

Até agora, o Ministério dos Negócios Estrangeiros já recebeu pedidos de 70 portugueses que estão no Brasil e que “por razões de saúde, necessitam de regressar a Portugal” – uma razão que o governante considera válida para o país organizar um voo de repatriamento destinado a pessoas nesta situação.

O Governo admite, porém, que continua a receber informações sobre esta situação, e que o processo ainda não está fechado. Santos Silva explicou que o objetivo passa, neste momento, por identificar os casos que precisam desta ajuda, essencialmente, pessoas que foram de férias sem perceber a gravidade da situação epidemiológica, pessoas que têm dificuldades financeiras ou que estão a passar por dificuldades no seio familiar.

O embaixador de Portugal no Brasil, Luís Faro Ramos, já tinha admitido, em declarações à RTP, que estão identificadas “cerca de uma centena” de pessoas “que nós consideramos que podem preencher esses critérios na base de problemas humanitários, na saúde, nas carências”.

As autoridades portuguesas prosseguem o levantamento das necessidades destes cidadãos, mas, para já, não existe nenhuma data para a operação.

Em contrapartida, do lado de cá do oceano vive-se um drama semelhante, tal como o i contou na sua edição de quarta-feira. Neste caso, porém, não existe ainda sinal, por parte do Governo brasileiro, de qualquer intenção para repatriar centenas de cidadãos brasileiros em dificuldades retidos em Portugal.

TAP “está pronta”

Tal como e março e abril, será a TAP a fazer as ligações. Ao i, fonte da empresa explica que a companhia portuguesa “está pronta para efetuar os voos humanitários e de repatriamento, assim que o Governo decida fazê-lo”.

Em relação às cerca de oito dezenas de pessoas que, neste momento, possuem bilhete pela companhia, mas que não conseguem voar, a mesma fonte recorda que “a companhia não tem responsabilidades pelos cancelamentos”, remetendo mais esclarecimentos para o Governo. As soluções apresentadas passam “pela possibilidade de os voos serem remarcados para data posterior, sem custos para o passageiro; pelo pedido de reembolso através de voucher, com validade por um ano, e majoração de 10%; ou pelo pedido de reembolso simples do valor do bilhete”, descreve. Todas estas informações e operações estão disponíveis no site da empresa.Há cada vez há mais relatos de pessoas desesperadas, devido à suspensão dos voos entre Brasil e Portugal – prorrogada até ao dia 1 de março pelo Governo português devido à pandemia –, que as mantém retidas no outro do Atlântico.

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