Perchicot gostava de assobiar ao mesmo tempo que pedalava a sua bicicleta nos arredores de Bayonne, onde nasceu em agosto de 1888. Podia ter servido como modelo para aquela cena de Butch Cassidy & The Sundance Kid quando Paul Newman carrega com Katherine_Ross no quadro do seu velocípede ao mesmo tempo que assobia Raindrops Keep Fallin’ On My Head.
Toda a gente gostava do jovem André Perchicot. Rapaz amável, educado, com aversão a tranquibérnias, dedicou-se ao curso de engenharia ao mesmo tempo que se afeiçoava cada vez mais à mecânica dos pedais. De tal ordem que em 1912 ganhou o Campeonato Francês de Velocidade disputado em Paris. Enfim, entrava pelos portões às escâncaras do universo dos grandes. Mas não lhe chegava. Podia ser ensimesmado, continuar a demandar os campos dos Pirenéus Atlânticos em esforços que lhe tomavam praticamente todo o dia, mas tinha uma daquelas ambições não exibicionistas que lhe provocavam comichões nas plantas dos pés. Em 1913, viajou até Newark para participar na primeira grande prova velocipédica da América e terminou em terceiro lugar. Depois foi campeão da Europa de velocidade e, logo no ano seguinte, terceiro classificado na mesma prova. Ninguém seria capaz de dizer que não estávamos perante um grande desportista mas a guerra, esse monstro incompreensivelmente sórdido que faz questão de entregar de mão beijada gerações inteiras à execrável Senhora da Gadanha, vinha aí para derrubar os seus sonhos e reduzi-los aos lamaçais dos campos de batalha.
Perchicot não quis mergulhar na imundície das trincheiras. Alistou-se na Força Aérea Francesa e tornou-se piloto durante a I Grande Guerra. Em 1916, já nem a guerra o quis. O seu avião foi abatido e a queda desamparada destruiu-lhe as pernas e uma das ancas. O seu período de recuperação foi longo. A sua convalescença mergulhada numa tristeza ácida de quem percebia que não voltaria a pedalar, nem mesmo por simples brincadeira de garoto que travessa campos de gipsofila deslumbrado com o azul dos miosótis. Inscreveu-se na Cruz Vermelha. Era um campeão e sairia da guerra como um campeão. Da guerra e da vida.
André Pernichot não se limitava a assobiar como uma cotovia como também cantava como um rouxinol. Ainda no hospital, agarrado às canadianas, visitava os soldados em piores condições e cantava para eles como forma de lhes fazer recuperar o orgulho em si próprios. Codini e Vuillemente eram alguns dos seus compositores de canções favoritos: «Soyons fort pour être libre/L’esprit clair, le cœur hardi/Ô merveilleuse espérance !/Notre élan joyeux et fort/Est vainqueur de la souffrance/Et peut défiler la mort !».
Lágrimas escorriam pela face de camaradas seus inutilizados para sempre. Homens incompletos, destruídos, amputados. Pernichot sentia, igualmente, as pálpebras arderem com a aproximação do choro. Nunca mais voltaria a erguer os braços ao cruzar a etapa derradeira. Mas se era obrigado a desistir do ciclismo, estava muito longe de ser obrigado a desistir da vida. O_Casino de Toulon não perdeu a oportunidade de o ter como figura de cartaz. O grande campeão, herói das frentes de batalha, discípulo de Mayol, que enchia até aos candelabros salas de espetáculos. Perchicot cantava bem. Talvez o sofrimento lhe tivesse afinado as cordas vocais num tom magoado que provocava suspiros nas senhoras da plateia que fingiam afastar a humidade dos cantos dos olhos com lenços e seda. Os cafés de Paris receberam-no de braços abertos, o Pathé e o Odéon exibiram-no como estrela de brilho que cegava, tratou de percorrer o mundo em tournées, por toda a Europa, por África e pelo Médio Oriente. O garoto que pedalava por entre pinheiros mansos e pelo meio da vermelhidão das papoilas esquecia a pouco e pouco os seus sonhos de infância.
André Perchicot, que queria ser ciclista famoso, ficou rico como Cresus, rei da Líbia. Comprou vivendas um pouco por toda a França, dois iates, automóveis luxuosos e uma companhia de camionetas em Bayonne. Chegou ao cinema, interpretou papéis em três grandes longas metragens – À la Varenne, Sapho e Pomme d’Amour. Neste último, assumiu o papel principal, o de um cantor de rua que tinha a alcunha de Pomme d’Amour e que se viu, de um momento para o outro, herdeiro de um castelo na Normandia.
Parecia que tudo lhe caia do céu. Até a morte, provocada por um vírus que apanhou em África e lhe destruiu o fim da vida, vítima de trafulhices e pilhagens profundamente velhacas e perpetradas por amigos que abusaram da sua debilidade. Mas já havia Charles Trenet, Mistanguett, Fernandel e Chevalier. A França esqueceu-o. Passava bem sem ele…
afonso.melo@newsplex.pt