Morrer já não é o que era

Os nossos filhos não vão saber reagir à quantidade pornográfica de informação que deixaremos espalhada pela net. Parte significativa das nossas memórias ficará guardada em ficheiros jpeg e png. A vossa neta verá os vossos vídeos a ‘bater com a bunda no chão’ no Eskada – e julgar-vos-á. O vosso tetraneto verá o vídeo que…

por Henrique Pinto de Mesquita

Longe vão os tempos em que se morria e pronto: morria-se. Fazia-se o enterro e lá ia a pessoa de escorrega para o abismo fora. Em 2021, o humano comum pouco consegue trepar a sua árvore genealógica. Geralmente conheceu os avós, quiçá saiba a terra dos bisavós e dificilmente saberá qualquer trivialidade sobre os trisavós. Estas pessoas e as suas vidas eram, por norma, esquecidas em três gerações. Ao invés, um descendente da antiga nobreza consegue descobrir quem foi o seu 8.º avô materno, a sua atividade, e, com sorte, cartas a indicar o que havia almoçado nesse dia. O homem do povo, naturalmente, caíra em esquecimento em três gerações e o nobre, simplesmente, não. Dir-me-ão: «ambos foram esquecidos, apenas há registos sobre o segundo». Certo. Contudo, os registos farão com que o segundo, por mais esquecido que esteja no sentido meta, nunca o esteja no sentido físico. O primeiro apagou-se para sempre, o segundo está esquecido – estado esse que se anula assim que um seu descendente vá procurar a sua ancestralidade. E porquê tanta conversa bafienta? Porque isto está a mudar: morrer já não é o que era. Agora, o oitavo neto de qualquer um poderá saber o que o seu oitavo avô almoçara no dia 24 de março de 2021 (e certamente estranhará o vício do avozinho por sushi).

A tecnologia conferiu-nos uma certa imortalidade digital face à efemeridade carnal. Apesar de soar bem – pois salvará a maioria do dito esquecimento –, este assunto é extremamente problemático. Se o descendente do nobre é privilegiado por ter acesso às cartas do seu ascendente, os nossos filhos não vão saber reagir à quantidade pornográfica de informação que deixaremos espalhada pela net. Parte significativa das nossas memórias ficará guardada em ficheiros jpeg e png. A vossa neta verá os vossos vídeos a ‘bater com a bunda no chão’ no Eskada – e julgar-vos-á. O vosso tetraneto verá o vídeo que fizeram para o ‘social beer challenge’ em 2014 – e julgar-vos-á. Não há precedente de uma quantidade tão grande de gente deixar uma quantidade tão grande de informação trivial sobre a sua vida. E isto está só a começar, pois, para aqueles que, como eu, nasceram na era da tecnologia e não estão propriamente interessados em largá-la, esta pegada digital crescerá até à morte. E aí, apesar da pegada parar de crescer, ficará marcada para a eternidade.

Façamos um exercício: pensem que morriam depois de ler este artigo. Quantos de vós estariam mortos, mas com uma história no Instagram ou um post no Twitter feitos hoje? E os comentários de há três anos que nem se lembram de fazer? Será que vos removeriam dos grupos do WhatsApp ou deixar-vos-iam ficar? O digital não dá espaço ao esquecimento. Antes, morria-se e apenas a família mais próxima tinha contacto com a esfera das trivialidades do morto – as suas fotografias, aquela raquete de ténis –, o que resultava nas pessoas menos próximas se esquecerem do morto com maior facilidade. Agora, quando alguém com perfil público e atividade digital morre, esta sua esfera trivial continua acessível a todos a qualquer hora e em vídeo, o que resulta em lembranças sobre o morto com maior frequência e intimidade, mesmo não lhe sendo próximos. Um exemplo disto, com todo o respeito às famílias, são os casos do Pedro Lima e Sara Carreira. Figuras públicas que mantêm centenas de milhares de seguidores no Instagram e cujas vidas, e-mails dos agentes, comentários e desabafos continuam lá congelados após terem morrido.

Efetivamente, morrer já não é o que era. O mais provável é ficar também com o perfil congelado consoante está agora. Por isso, vá escolhendo bem cada fotografia ou post que faz, pois a pesquisa do vosso trineto começará por aí – e nenhum trineto gostará de descobrir que o avô foi apoiante do CHEGA ou a avó fã do Pedro Chagas Freitas.