por Sofia Aureliano
Se aos outros cidadãos europeus é reconhecida a capacidade de tomar decisões conscientes e informadas que só a si mesmos afetam e dizem respeito, porque é que aos cidadãos portugueses é retirada essa autonomia?
1. Milagre à militar. A vacinação contra a Covid-19 está a correr bem. Não há uma única pessoa com quem me cruze que já tenha sido vacinada que não diga maravilhas do processo: do rigor da hora de chamada, da simpatia dos profissionais e dos voluntários, da atenção especial a cada um dos cidadãos, esclarecendo os naturais medos e ansiedades associados ao desconhecido, um verdadeiro serviço a cliente cuja descrição normalmente termina com “isto nem parece Portugal”. Na realidade, devíamos ser mais exigentes e o normal seria não ficarmos tão deslumbrados por esta ser a forma como somos tratados. Pagamos bem para receber isso. Talvez daqui a uns anos, se Gouveia e Melo se quiser dedicar à Saúde…
O Vice-Almirante conseguiu o milagre de colocar os portugueses unanimemente a dizer bem de um serviço público. António Costa deve estar delirante com as críticas positivas e os elogios ao processo. Mas escusa de esfregar as mãos de contente, porque nada disto é graças aos ofícios do governo. É, antes, apesar deles.
2. Desperdício, não! Por mais eficiente que a estratégia de vacinação seja, há uma coisa que nem o coordenador da task force consegue fazer: vacinar sem vacinas. E o pior é saber que as vacinas existem (ou vão existir), mas que a Direção-Geral de Saúde (DGS) impede a sua utilização, não sei com que intenção ou propósito (sendo que científico não é). Ou então temos informação privilegiada que mais ninguém na Europa tem e não sabemos.
Senão vejamos: está previsto que Portugal receba, no 3º trimestre de 2021, 2,7 milhões de vacinas da Janssen que, sendo de dose única, imunizariam 2,7 milhões de portugueses. Seria fantástico se fossemos um dos 21 estados-membros da União Europeia que estão a administrar a vacina sem qualquer restrição, seguindo as diretrizes da Agência Europeia do Medicamento e a prática autorizada pela FDA (Food and Drug Administration) americana. Mas a verdade é que Portugal colocou uma restrição de aplicação desta vacina para maiores de 50 anos. Com base em quê? Ainda não explicaram. Mas não deve ser nos 0.0003% de probabilidade de reação adversa que não tiraram o sono aos governantes dos outros estados-membros. Provavelmente, trata-se de um caso agudo de excesso de zelo. É-o, de certeza, de falta de noção.
Uma dúvida: uma vez que a vacinação está a correr bem e em junho já se prevê que se comecem a chamar pessoas com 30 e mais anos, para que vão servir as 2,7 milhões de vacinas que Portugal comprou no 3º trimestre? Para o lixo? Ou, como estamos com a atividade económica a um ritmo alucinante, a economia não podia estar mais estável e nem se ouve falar em pessoas no limiar da pobreza, podemos dar-nos ao luxo de atrasar a imunização dos portugueses mais um trimestre ou dois, e dispensar estes milhões como se fossem “sobras”, oferecendo-as aos países irmãos?
Ironias à parte, do mal o menos. Porque a escassez nós até conseguiríamos compreender, mas o desperdício não. Se formos impedidos de vacinar a população portuguesa, que ao menos canalizem as vacinas para os países que não têm nem terão a curto ou médio prazo forma de as adquirir. Porque a erradicação do vírus é um processo global e o seu sucesso dependerá da solidariedade mundial.
Certamente alguma mente brilhante da DGS ou do ministério da Saúde já deverá ter pensado sobre isso. Deve estar a demorar mais tempo a informar-nos porque a task force de ciências comportamentais, criada para ajudar na comunicação, ainda não descobriu como poderá chamar-nos patetas sem nós percebermos.
3. Consentimento informado. Nos países da União Europeia onde estão a ser administradas vacinas com restrições de idade, os cidadãos podem escolher receber as vacinas, se assim o desejarem, se derem o seu consentimento informado. Em Portugal, as normas da DGS publicadas a 30 de abril sobre a administração da vacina da Astrazeneca e da Janssen, com limitações para mais de 60 e 50 anos, respetivamente, também têm essa premissa (está nas normas da DGS ainda em vigor). Quem quiser ser vacinado, conhecendo os riscos associados, pode sê-lo. No Luxemburgo, por exemplo, esta liberdade de escolha correu tão bem que o país teve de comprar mais vacinas com restrições para equilibrar a oferta com a procura.
4. Desconsinto o desconsentimento. Em Portugal, esta liberdade seria uma grande ajuda para dar um fim acelerado e útil aos 2,7 milhões de vacinas da Janssen que vêm a caminho. E é mais do que razoável que, num país em que a vacina não é obrigatória, se permita ao cidadão escolher não só se quer ser vacinado contra a Covid-19 mas também, a querer, com que marca de vacina (havendo stock). Ainda para mais quando não existe nenhuma recomendação do regulador europeu do medicamento contra essa prática.
Segundo a comunicação social, a DGS está a pensar em recuar no consentimento informado e em não permitir que os portugueses sejam vacinados com qualquer vacina, se assim o desejarem, se não estiverem dentro da idade autorizada. Um passo atrás no nosso direito de escolha e mais uma forma de nos menorizar e chamar de mentecaptos.
Se aos outros cidadãos europeus é reconhecida a capacidade de tomar decisões conscientes e informadas que só a si mesmos afetam e dizem respeito, porque é que aos cidadãos portugueses é retirada essa autonomia?
A ser verdade, este é um caso sério de falsa condescendência e objetiva limitação de liberdade.
Dispenso paternalismos indulgentes e que pensem pela minha cabeça.
5. Tutela poucochinha. Qual é o medo do governo? Que alguém o responsabilize por alguma ocorrência na sequência da toma de uma vacina? Vão ao dicionário ver o que significa consentimento informado.
E tenham a certeza que vou responsabilizar-vos, sim, pelas consequências de contrair o vírus num período em que já poderia estar vacinada e me foi negada essa hipótese, fruto de uma tutela sem capacidade de decisão e poucochinha.
Porque o vosso pânico de que algum dedo vos possa ser apontado não só limita a minha liberdade como põe em risco a minha saúde.
Daqui, levam um “não” redondo e bramado ao desconsentimento do consentimento informado. A vacina contra a Covid-19 é um bem essencial e ainda escasso. Não aceito que me privem do acesso mais célere possível a ela. Por isso, assumo totalmente a responsabilidade de escolher se quero ser vacinada e, conhecendo os riscos, as estatísticas e as possíveis reações adversas, de escolher que vacina quero tomar, tenha ela ou não limitações associadas.