Rainha Ginga. A vida extraordinária da desafiadora do Império

Foram os portugueses, no tempo da Ibéria unida sob o poder dos Felipes, quem criou a lenda. Batizada sob o nome de Ana de Sousa, foi senhora das terras do Dongo e uma diplomata dura que surgiu pela primeira vez nos relatos dos cronistas quando chefiou uma enorme embaixada até Luanda.

Ana de Sousa: foi com esse nome que a batizaram. Porque Ana era a portuguesa que serviu de sua madrinha; porque Sousa era o apelido do governador de Luanda nesse tempo – João Correia de Sousa. Ana de Sousa não significava nada para a filha de Mbande Quiloanji Quiacasenda e de Guenguela Caquembe, a escrava ambundo que a deu à luz em 1582. Aí era Jinga, ou Ginga.

Porque nascera com o cordão umbilical em volta do pescoço e, na língua quimbundo, kujinga significa girar. Rodaram-na para não morrer à nascença. A ginga das angolanas que passam no Quinaxixe não caiu no léxico por acaso. E foi aí mesmo, na rotunda de Luanda, que em 2002 foi erguida uma estátua em sua honra, comemorando ao mesmo tempo os 27 anos da independência de Angola.

Vivíamos no tempo dos Felipes. A Ibéria unida, sonho de tantos. Antes da tomada do poder por parte dos castelhanos, os portugueses tinham relações cordiais com o N’gola Quiloanji. N’gola quer dizer rei. Depois o nome  passou à zona sobre a qual reinava e N’gola transformou-se em Angola.

Nessa altura os portugueses precisavam de escravos para enviar para o Brasil na busca do ouro. Quiloanji fornecia gente. Muita gente. Gente do Dongo (na região das Pedras de Maupungo ou Pungo), do qual era senhor, e do vizinho Congo, onde mandava roubar mulheres e crianças para vender aos comerciantes dos navios que chegavam de Lisboa. E a vida era assim. Ninguém dizia não.

Quiloangi descobrira a forma ideal de se libertar dos inimigos que combatiam o seu despotismo. Reduzia-os às regras do mercado, aos bojos das caravelas que os conduziam para o lado de lá do Atlântico, matinha os seus fiéis distantes da febre lusitana dos batismos em massa. Tinha, nos conquistadores, aliados. A sua força era indiscutível porque era, também, camarada do homem branco. Ou, pelo menos, ele julgava assim.

São complicados, os déspotas. Não admitem ser contrariados. N’gola Quiloangi cometeu um erro banal: o de pensar que o seu poder era imbatível. Geralmente, chegados a esse ponto, os governantes caem do plinto das suas estátuas humanas. Em 1617 estava morto.

O soba começara a aborrecer os colonos com as suas exigências. Deixara de fornecer o número de escravos acordado, rebelara-se contra a ideia dos portugueses de construírem uma cadeia na zona de Ambaca. Isto é: tornara-se dispensável. A sua morte continua encerrada numa aura de mistério.

Mas, no fundo, ninguém tem dúvidas que foi mandado matar pelos seus antigos parceiros de negócios. Deixou quatro filhos: Ginga (que também era chamada de Nzinga Ambande), N’gola Mbandi (o régulo de Matamba), Mucambu (depois baptizada de Bárbara) e de Quifungi (que ganhou o nome católico de Graça).

Ginga acabaria por perceber que o seu batismo lhe daria estatuto na hora de lidar com os portugueses. O nome de Ana de Sousa podia não bulir com os seus sentimentos, mas viria a ser-lhe muito útil. E soube aproveitá-lo. Até porque os missionários a ensinaram a falar e escrever em português.

Menina de seu pai

Quando vamos à procura do seu nome, encontramos muitos: Jinga, N’jinga, Ginga, Zinga, Zingua e Singa. O pai tinha uma predileção especial por ela em relação aos outros filhos e nunca fez questão de a esconder. Foi educada como um homem. Aprendeu a combater e a arte sub-reptícia da política.

N’gola Mbandi, ou Angola Mbandi, foi rei após a morte de seu pai. Era um homem marcado pelo pavor que sentia pela irmã Ginga. E pela angústia de saber que o filho recém-nascido da irmã, seu sobrinho, poderia vir a reclamar o trono e, quem sabe?, conluiar-se com os seus inimigos e proceder ao seu assassinato. Deu ordens para que matassem a criança e para que arranjassem forma de que Ginga nunca mais voltasse a ter filhos. Os que obedeciam cegamente às suas ordens estavam preparados para deitarem mãos à barbárie. E para amputarem Ginga por dentro da sua feminilidade.

Nada em que ela já não tivesse pensado. Quando surgiram em sua procura tinha fugido para a região de Matamba.
Mbandi tinha outro rival: o irmão mais novo, filho da mulher principal de Quiloangi, legítimo herdeiro do trono que fora usurpado. Mbandi não passava do filho de uma concubina. Não precisou de se preocupar muito tempo com o garoto.

A própria Ginga, que ambicionava o palanque ocupado por Mbandi não via grande interesse em ter um intermediário entre ela e o título. O miúdo apareceu morto. Nunca ninguém veio a público contar a verdadeira história do seu fim trágico.

O nome de Ana de Sousa surgiu nos relatos dos cronistas portugueses a partir de 1622. O irmão Mbandi pensou que a melhor forma de se ver livre dela era enviá-la como embaixadora do seu reino do Ndongo para acordar a paz com os portugueses.

Por essa altura, os seus irmãos de tribo tinham começado a desprezá-la por se dedicar a práticas muito apreciadas pelos vizinhos imbangalas, ou jagas, entre as quais cabia a do canibalismo. Ginga não era uma mulher normal. Corria-lhe nas veias um sangue selvagem incontrolável.

E era dona de uma arrogância e de uma prepotência que viria a espantar os homens que vinham da Europa. Mas, ao mesmo tempo, tinha uma impressionante capacidade de autocontrolo. Algo de fundamental para quem dera início a uma carreira diplomática.

O encontro

Um ano antes, o novo governador de Luanda, João Correia de Sousa, que substituíra o bem mais bélico e impaciente Luís Mendes de Vasconcelos, enviara ao Dongo uma pequena embaixada chefiada pelo padre Faria Barreto que, fazendo-se entender bem no dialeto local, prometera a Mbandi a proteção por parte dos portugueses em troca da evangelização dos seus súbditos.

Depois de duras negociações, atingiu-se um acordo. Mbandi conseguira, pela sua parte, que lhe restituíssem os prisioneiros da sua tribo capturados na vigência de Vasconcelos, a destruição da cadeia de Ambaca (que lhe ficara entalada na garganta como uma espinha de tilápia), e o reforço das suas tropas na guerra aberta contra o seu grande inimigo, Jaga Cassanji. Toda a gente parecia satisfeita com a via encontrada para o bom entendimento entre africanos e europeus.

Chegara a vez de Ginga entrar para a História. Convidada para encabeçar a delegação do Dongo a Luanda não se poupou a esforços para deixar a sua marca. A empreitada até Luanda ficaria para sempre nos anais da colonização lusitana. Com um séquito enorme, faz-se anunciar de tal forma que foi recebida com honras de descargas de mosquetes e instalada num dos grandes palacetes da cidade. Apesar disso, o governo português não estava disposto a tratá-la de igual para igual.

No momento em que entrou no magnífico salão onde seria recebida por João Correia de Sousa, viu que havia uma cadeira num palanque para o governador de Luanda e que, para ela, estava reservado um espaço sobre um tapete onde se pousavam almofadas de seda. Um espetáculo bonito mas que servia para a rebaixar perante o seu interlocutor. Não era mulher para meias medidas.

No exato momento do encontro com o governador, ordenou a uma das suas acompanhantes que se depusesse de quatro no salão e sentou-se nas suas costas de forma a conversar cara a cara com Correia de Sousa. A atitude foi tomada por parte dos portugueses como uma tal exibição de autoridade que os levou a prosseguir os debates com subtileza suficiente para que se não se rompesse o fio ténue de uma paz que estava longe de ser ainda um facto consumado.

A lenda

Foram os portugueses que alimentaram a lenda de Ana de Sousa, ou da rainha Ginga, como se tornou conhecida. Os relatos e os textos publicados durante a visita da sua enorme deslocação a Luanda multiplicaram a fama da mulher que fora brutalmente perseguida pelo seu meio irmão nas terras do Dongo. A forma como ela apresentou ao governador João Correia de Sousa as fragilidades governativas de N’gola Mbangi e se dispôs, livremente, a ser batizada e assumir a fé católica, ao mesmo tempo que recusava liminarmente a exigência de um pagamento anual do seu povo à governação portuguesa sob o pretexto que os homens do Dongo eram independentes e não submetidos à coroa dos Felipes teve uma repercussão tremenda.

Era um fortíssima declaração de liberdade e de recusa à submissão. João Correia ficou subjugado perante a personalidade daquela que, em Luanda, já todos chamavam de rainha Ginga. Um pormenor, talvez apenas mitológico, encerraria a longa conversa entre ambos os governantes: ao perceber que Ginga se retirava da sala deixando de gatas a mulher que lhe servira de cadeira, questionou-a sobre a razão que não permitia que a escrava se levantasse. Ana de Sousa, do alto da sua protérvia, limitou-se a responder: «Nunca me sento duas vezes no mesmo sítio. Não preciso dela para mais nada».

Ginga tinha 40 anos. Regressava a casa com o estatuto de rainha e a forma como tratara o governador de Luanda de igual para igual espalhou-se por todo o império. As ocorrências que descreve ao irmão N’gola enchem-no de alegria e de entusiasmo. Por pouco tempo.

Solicitando que Luanda lhe enviasse um sacerdote para que fosse, por sua vez, batizado. ganhando com isso o respeito primordial dos portugueses, ficou profundamente ofendido quando percebeu que o padre enviado especialmente para lhe atribuir a unção, Dionísio de Faria, tinha uma pele tão ou mais negra do que a dele.

Ambande não era, propriamente, um sujeito que devesse muito à inteligência. Desvairado por aquilo que considerou um insulto, reuniu as suas tropas e retomou a guerra contra os portugueses que já parecia totalmente esquecida. A ação desastrosa atirou-o para a derrota e para o exílio da ilha de Quanza onde, por ordem da irmã Ginga, foi envenenado, Agora, Ana de Sousa era rainha. Ou melhor: como ela própria dizia, era rei.

Para os portugueses, ter uma rainha católica na zona do Dongo era conveniente e não criava problemas de maior. Com a substituição do governador de Luanda, primeiro saindo João Correia de Sousa e entrando para o seu lugar o bispo frei Simão Mascarenhas, sendo este trocado por Fernão de Sousa em menos de um ano, o cenário iria mudar. E por completo. 

Enquanto a rainha Ginga continuava a reclamar a devolução dos cidadãos donga feitos prisioneiros pelos portugueses, estes estavam bem mais preocupados em enviar cada vez mais escravos para as minas do Brasil. Fernão de Sousa não gostava da sua homónima Ana e resolveu tirar-lhe o tapete de debaixo dos pés. Ignorando por completo a sua popularidade, nomeou Ari Quiluangi, um parente afastado de Ginga, como rei de toda a região, apeando-a de todos os poderes.

Ari ganhou o nome cristão de Felipe e um comandante para os seus exércitos, o capitão-mor Bento Banha Cardoso, e a rainha deposta renegou, por sua vez, o seu catolicismo – Ana de Sousa viria a ser para o resto dos seus dias a rainha Ginga. Felipe III de Espanha, II de Portugal, tratou de receber de Ari Quiluangi os 100 escravos acordados no plano de tomada de poder. 

Ginga passa a ser um inimigo sem escrúpulos, a protagonista que uma guerra que durou até ao dia da sua sua morte, a 17 de Dezembro de 1663, já Portugal recuperara a sua independência. Ginga não teve nojo de se aliar aos holandeses que, aproveitando a tomada do poder dos espanhóis sobre Lisboa, e lançaram como falcões sobre as colónias lusitanas e os seus tráfegos de mercadorias, tendo mesmo chegado ao ponto de tomarem Luanda.

Em 1645, a rainha Ginga protagoniza um daqueles episódios tão abjeto para os vencidos como glorioso para os vencedores – cercou o acampamento de Massangano e trucidou todos os portugueses que aí viviam. Só sobre a vigência do governador Salvador Correia de Sá é que as negociações pela paz são retomadas.

Em Outubro de 1656, é assinado um acordo: cento e trinta e seis escravos em poder dos portugueses são trocados pela muito pouca valiosa irmã de Ginga, Bárbara. A mulher que desafiara o império resolveu morrer como uma devota entre monges capuchinhos. Atingira a idade de 87 anos… Estava cansada de guerra.