O Martelo de Henry

Henry Cooper teve uma carreira discreta mas foi o primeiro pugilista a derrubar Cassius Clay. Um murro que lhe valeu o título de Sir

Um jornal regional inglês, da zona de Leeds, salvo erro, ficou famoso quando, nos anos 80, fez uma manchete muito pouco apaixonante: «Mulher de 80 anos morre!». Harry Cooper não chegou tão longe – em idade, quero dizer – e não mereceu manchete, mas o obituário que John Samuel fez dele no The Gurdian foi tão comovente que nos faz ter vontade de ler os nossos.

Cooper tinha 76 anos quando a Senhora da Gadanha resolveu ceifar-lhe a vida. Foi um dos desportistas britânicos mais populares do pós-guerra e, embora nunca tenha conseguido ser campeão do mundo de peso pesados, atirou com Mohammad_Ali ao tapete por breves segundos, breves segundos esses que lhe ofereceram a glória eterna. No dia 18 de junho de 1963 Ali ainda era Cassius Clay e não renegara o seu nome de escravo. O gancho de esquerda que Harry lhe dirigiu aos queixos foi tão potente que o fez dar dois passos para trás e cair de rabo no chão para a alegria suprema de 55 mil pessoas que presenciaram o momento em Wembley. Foi uma espécie de ‘Soco do Século’ para os ingleses. Cooper limitou-se a comentar no fim: «Foi o gongo que salvou Clay!».

O punho do pugilista britânico foi estudado pela ciência, se é que tal era possível. Houve quem concluísse que viajou até à cara de Clay no espaço de cinco polegadas e meia a 30 milhas por hora e atingiu-lhe o maxilar com 60 vezes a Lei da Gravidade. Como se chegou a estes números é um mistério, mas não restam dúvidas que a matéria atraiu matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias, segundo as palavras de Newton. Para a história ficou com o nome de ‘Enry’s Hammer, ou o Martelo de Henry. Toda a grande ilha que fica para lá da Mancha sentiu um orgulho nacional que acabaria por valer a Henry Cooper o título de Sir, concedido pele rainha Isabel, segunda do nome.

Cassius Clay era um menino. Tinha apenas 21 anos e surgira em Inglaterra para combater os dois mais famosos pugilistas britânicos da época, os já veteranos Archie Moore e o tal Cooper da martelada. Podia ser pouco mais do que um garoto imberbe, mas já atingira as raias da protérvia com as suas frases bombásticas que encantavam jornalistas e espetadores: «I am the prettiest… I am the greatest!».

Nascido em Lambeth, no sul de Londres, Henry viveu a maior parte da infância juntamente com o seu irmão gémeo, George, numa casa de acolhimento, na Farmstead Road uma propriedade em Bellingham, de onde tiveram de ser evacuados durante a II_Grande Guerra, e atirados para a bem mais pacífica mansão de Lancing, na costa do Sussex. Gente pobre que precisava de ganhar a vida fosse lá como fosse. Henry aproveitou o facto de viver perto de um campo de golfe para andar à procura de bolas perdidas que devolvia em troca de uns pence. O irmão George dedicou-se ao futebol e o mais velho dos Cooper, Bern, tornou-se num reconhecido campeão de críquete. Mais abrutalhado, Henry preferiu aperfeiçoar a técnica de esmurrar os garotos que se metiam com ele na rua e, em 1949, já andava de ringue em ringue a tentar fazer disso uma profissão. O seu punho esquerdo tinha uma potência de apavorar hipopótamos mas não conseguiu ir longe nos Jogos Olímpicos de Helsínquia, em 1952, eliminado à primeira pelo soviético Anatoly Perov.

Foi por essa altura que o seu gémeo George deixou o futebol para lhe fazer companhia nos treinos ministrados por um macaco velho chamado Jim Wicks. George e Henry eram tão iguais que teria sido perfeitamente possível trocá-los durante um combate, não fosse o caso de dar muito nas vistas. Além do mais, George tinha algum jeito mas estava muito longe de ter uma esquerda assassina como a do irmão.

Antes do combate com Cooper, Clay resolveu fazer uma das suas sessões de palhaçadas e derreteu o seu adversário: «Henry é um vagabundo, um traste e um aleijado que não merece sequer uma sessão de treino, quanto mais um combate». Ele gostava mesmo de dar nas vistas ainda que fosse da forma mais desagradável que se pudesse imaginar.

Tantos insultos mexeram com o brio de Cooper que caiu no erro de ganhar ódio a Clay. Por alguma razão Sun Tzu avisava no seu livro A Arte da Guerra para não odiarmos os nossos inimigos porque isso nos tira a lucidez. A forma enlouquecida como Henry se atirou a Cassius Clay valeu-lhe o famoso Martelo de Henry e a alegria de ver Clay por terra. Mas, no quinto round foi atingido num sobrolho e a abundância do sangue fez com que o árbitro interrompesse a refrega, entregando a vitória ao americano. Então, Clay teve um dos seus momentos lúcidos de bondade: «Afinal Cooper já não é um vadio. Foi o primeiro pugilista a deitar-me ao chão». Um murro para a posteridade.

afonso.melo@newsplex.pt