Uma Terra deixada para trás pelos militares

Longe vão os tempos em que os miúdos de Tancos iam às escondidas ao cinema militar. É uma terra que sempre viveu do exército. E que começou a morrer quando este se desvaneceu.

Em Tancos e arredores, a frase «isto está tudo morto», proferida com amargura ou resignação, ouve-se uma, e outra, e outra vez. Nesta terra ribeirinha, que cresceu à volta do Polígono Militar de Tancos, com o Campo Militar de Santa Margarida do outro lado do Tejo e o centro logístico do Exército sediado no Entroncamento, ali ao pé, sente-se como em mais lado nenhum a redução nos efetivos militares – a nível nacional, caíram mais quase 30% entre 2010 e 2020, segundo dados do Instituto de Defesa Nacional. Contudo, o declínio de Tancos já vem de trás. Os mais velhos lembram-se de o sentir sobretudo a partir de 1974, com o final da guerra colonial, quando deixou de ser necessária tanta tropa, mas também a partir de 2004, com o fim do serviço militar obrigatório.

«Quando vim para cá a atividade militar já não era a mesma coisa», comenta José Silva, de 66 anos, que chegou a Tancos há umas quatro décadas, quando casou com a filha de um militar. Não apanhou os tempos mais movimentados, mas ainda se lembra bem de quando havia quatro tabernas e quatro cafés, cheios sobretudo de tropas – hoje sobram só dois, incluindo o da União Desportiva de Tancos, onde trabalha Silva, que recebe uns quantos velhotes, e um ou outro turista que vai apanhar o barco para visitar o castelo de Almourol.

«Concentrava-se aqui muita gente militar. E muitos acabaram por ficar, ou na Praia do Ribatejo, porque casavam por cá ou para não terem de andar para a frente. Sobretudo os sargentos, oficiais e afins. E depois os seus subordinados também vinham visitá-los. Havia muito movimento», recorda. «Ainda me recordo de ir de viagem e ver a estação do Entroncamento completamente cheia de militares, um pandemónio».

É difícil de imaginar isso. Agora, só se vê uma mão-cheia de militares, às vezes passam uns quantos paraquedistas belgas e holandeses, para fazer saltos quando há exercícios da NATO.

Lá fora, as ruas estão desertas, uma pasmaceira. Mas até já houve tempos em que fazia falta em Tancos algum sossego. «Contaram-me que muitas vezes havia queixas dos militares porque faziam barulho demais, ou por se meterem com as raparigas, essas coisas», menciona Silva, sorrindo. «Quando era preciso enxotá-los havia aí quem se encarregasse disso». 

Longa história

Tancos, uma localidade que hoje tem uns duzentos habitantes, é uma referência constante nos momentos mais cruciais da história moderna das forças armadas.

Em 1916, quando Portugal entrou na Primeira Guerra Mundial, e o regime republicano se deparou com a tarefa de treinar e equipar dezenas de milhares de jovens, vindos de todas as partes do país, para os enviar para a carnificina nas trincheiras de França e da Bélgica, foi aqui que se deu o chamado «Milagre de Tancos».

Sob a direção do ministro da Guerra, Norton de Matos, em apenas três meses ergueu-se uma autêntica cidade de pau e lona, recheada de recrutas – na prática, «foi a maior operação de relações públicas e propaganda jamais organizada pelo exército em Portugal», escreveu Helena Pinto Janeiro, investigadora do Instituto de História Contemporânea da NOVA/FCSH, acabando muitos dos que passaram por Tancos a perecer por falta de equipamento adequado, condições inacreditáveis, ou massacrados em La Lys. 

Meio século depois, com o eclodir da guerra colonial, era no Polígono Militar de Tancos que estavam estacionados os caçadores paraquedistas, as primeiras forças enviadas pela metrópole para o teatro de operações africano. Ao longo desses anos, muitos jovens passaram pelo polígono. Alguns voluntários, muitos obrigados a servir numa guerra com a qual não queriam ter nada a ver. 

Também foi aqui que se decidiu o futuro do país após o 25 de Abril, com o Verão Quente a dar os seus últimos fôlegos. Foi o «pronunciamento de Tancos», a 5 de setembro, quando a Assembleia do MFA reuniu na Escola Prática de Engenharia em Tancos, que ditou o afastamento de Vasco Gonçalves, batido pelo Grupo dos Nove.

E claro, quem esquece que foi aqui que ocorreu um dos maiores embaraços das forças armadas portuguesas, o roubo dos paióis de Tancos, em 2017?

Foi mais um momento em que o polígono espelhou as crises enfrentadas pela instituição, diriam os mais preocupados com o seu estado. O inquérito judicial trouxe à luz do dia histórias de ladrões que passaram por vedações com buracos, de cadeados estragados, câmaras avariadas, patrulhas registadas mas não realizadas, unidades com uma falta de pessoal gritante. A sensação que fica é de degradação, quase abandono. E é algo sentido por todos os habitantes de Tancos e arredores com quem o Nascer do SOL falou, criados entre militares. 

‘Pão que o diabo amassou’

Manuel Cardoso ainda se recorda de ver as ruas de Tancos cheias de vida, de entrar à socapa no cinema militar quando era miúdo.

«Vinha pessoal da Praia do Ribatejo quando sabiam que havia um bom filme», lembra. E como os militares conheciam bem a gente da terra, havia sempre alguém que era amigo ou familiar de alguém, deixavam-nos passar. «Tínhamos aqui belíssimos filmes, que não se viam noutros lados. Quando saíam os militares iam logo no dia seguinte buscá-los a Lisboa, havia ali um esquema de trocas qualquer».

Já lá vão uns bons anos – Cardoso, militar reformado e antigo presidente da junta de freguesia de Tancos, durante 16 anos, celebra o seu 83.º aniversário este mês. Falou com o Nascer do SOL no café do Grupo Folclórico Os Pescadores de Tancos. Entre as moradias que se vêm da janela, quase todas são de seus camaradas oficiais, vindos do norte, centro, sul e ilhas mas radicados ali. Ou então pertencem aos seus filhos e netos – a maior parte dos quais vai partindo para o Entroncamento, Abrantes ou Lisboa, à procura das oportunidades que não tem na sua própria terra.

Eram outros tempos. Não só havia mais efetivos das forças armadas, como os transportes eram muito mais complicados, incentivando-os a passar o fim de semana nos arredores de Tancos. «Não era só falta de transportes, era também falta de dinheiro. Que o soldado na recruta recebia uns três escudos por mês», explica Cardoso. Ou seja, só dava para ficar a conviver, jogar matrecos ou beber uns copos em Aringa, uma localidade ali ao pé do polígono, que tinha uma tasca – hoje está abandonada, só vive lá uma pessoa, que o Nascer do SOL nem sequer encontrou. 

Na prática, Tancos sempre viveu dos caminhos-de-ferro – que estão em decadência – e dos militares. É uma ligação profunda, muitas vezes de sangue. Daí que tenha custado tanto saber do assalto aos Paióis de Tancos, ver todos os dias falar disso na televisão, conta Cardoso, que enfrentou quatro comissões militares no mato, em Angola e Moçambique.

«Disse a camaradas meus: ‘Olha que a tropa está bem entregue. Nem são capazes de guardar a sua casa. Como é que a gente pode ter confiança?’. Era uma interrogação que nós fazíamos», lamenta.

«A tropa está entregue a cachopos, não há responsabilidade não há nada», queixa-se Cardoso, com a desconfiança típica da idade. Ou então com a amargura de quem viu muita coisa. «São miúdos que não sabem o que é a guerra. Não comeram o pão que o diabo amassou».

Coronéis não cortam relva

«Quando volto para casa e me perguntam onde é que estou colocado, a reação é logo: ‘És de Tancos?’», queixa-se um jovem sargento, oriundo de Viseu, «sabe como é a boca do povo».

Cruzámo-nos com o sargento quando espreitávamos as ruínas do quartel de Casal de Pote, em tempos sede de um batalhão de transmissões, hoje ruína, com paredes suportadas por escoras improvisadas, tetos caídos e árvores a crescer no recinto. Pareceu-nos um bom símbolo das dificuldades de Tancos – ainda bem que o sargento apareceu, que o quartel afinal era usado como campo de treino de minas e explosivos. 

As suas queixas ecoavam às que ouvimos de outros militares. Salários baixos, unidades reduzidas para um décimo dos seus anteriores efetivos, demasiadas horas de trabalho. Como são recrutados cada vez menos praças (páginas 8 e 9), os que vêm têm de trabalhar muito mais, porque os oficiais querem fazer as mesmas coisas com menos gente, explica-nos um outro militar.

De pele tisnada do sol, sotaque do norte, e calças de camuflado, falou connosco através da vedação do seu quintal, enquanto puxava de um cigarro. Contou-nos histórias de serviços de 24 horas quando há incêndios, gente que fica um mês sem ir a casa ou lavar roupa. E queixou-se de uma redução de efetivos do exército feita para beneficiar os quadros permanentes – mas depois não são tenentes e coronéis que vão cortar relva, rebocar paredes, arranjar canalizações, fazer patrulhas de mato ou guardar paióis. 

Sim, «os praças são mesmo uns escravos», garantiu-nos um sargento com quem nos cruzámos num café da região, quando foi beber uma cerveja com a mulher à hora de almoço. E como não têm praças suficientes obrigam-nos a trabalhar mais, como têm de trabalhar mais muitas vezes estes acabam por desistir antes do fim contrato, pagando indemnização. E reduzindo ainda mais o número de praças, num ciclo vicioso. «Contando o número de horas que os obrigam a fazer, não chegam a receber uns dois euros à hora», diz-nos, depois de umas contas de cabeça.