10 de agosto de 1953. Não havia mulheres na cidade dos homens desocupados

Ciudad Esperanza e Vila Desocupación nasceram gémeas nas margens argentinas do rio de La Plata. Entre o sonho de uma vida e a desistência de outras, foram um fenómeno social sem paralelo.

Havia, na Argentina, uma cidade sem mulheres. Os homens tinham de aturar-se uns aos outros, arranjassem-se lá como pudessem. E sobrava tempo para isso. Porque além desta cidade argentina não ter mulheres, todos os homens estavam desempregados. Ninguém os obrigava a continuarem por lá à míngua de emprego e de comida. Volta e meia, alguma organização de apoio humanitário aparecia com camionetas cheias de alimentos para distribuir pelos indigentes. A cidade ficava nas margens do rio de La Plata e tinha um nome que parecia contrariar tudo o que nela se passava: Puerto Esperanza.

Três anos antes, o tecido social de Puerto Esperanza desfizera-se como um tecido puído. Milhares e milhares de trabalhadores agrícolas e pedreiros por via das greves contínuas a que se dedicavam, foram despedidos. Na grande maioria, abandonaram a cidade e partiram para Buenos Aires, espalhando-se pelos subúrbios, misturando-se com os descamisados. Outros, resolveram manter-se espalhados ao longo do rio, aproveitando as zonas de praias convidativas que já tinham planos aprovados para se tornarem no local de férias dos argentinos mais ricos. Formaram, aos milhares, uma cidade nova, a céu aberto, casas misturadas com tendas ou barracas de tecto de zinco. O Governo deu ordem expressa às autoridades policiais para proceder ao despejo. Mas ao despejo para onde? Na verdade era gente que não apenas vivia na rua como não tinha lugar para onde ir. E assim, junto a Puerto Esperanza, nasceu Ciudad Esperanza. A cidade dos homens desocupados, desempregados, que tinham enviado as mulheres e os filhos para a luta diária e bruta da capital Buenos Aires.

 

Vila Desocupación

Foi esse o seu nome quando a esperança começou a morrer. Nada nem ninguém, nem mesmo a força policial a raiar a violência, conseguia tirar aqueles homens do lugar que escolheram para viver. Exigindo trabalho e comida. Curiosamente, em Vila Desocupación, à beira de Puerto Esperanza, a organização era perfeita. Como se os homens também tivessem decidido que eram perfeitamente capazes de formar uma sociedade que funcionasse sem o elemento-mulher.

Chegaram ao ponto de atingir os trinta mil habitantes. Muitas das mulheres optaram por viver em aldeias vizinhas, no sonho de recuperarem os seus homens e de recomporem as suas famílias. Depois, houve gente que encontrou trabalho. E os que tinham profissões não cabiam em Vila Desocupación e foram embora. É verdade que tudo isto parece saído de um conto de Garcia Marquéz. Mas nada do que aqui fica escrito é produto da imaginação.

Os governantes não perderam tempo: de cada vez que alguém conseguia um trabalho qualquer, mesmo que à jorna, a casa do infeliz era derrubada a golpes de camartelo. Servia de aviso. Em Vila Desocupación o verbo desocupar era conjugado de muitas formas. De certa maneira, era como se estivessem em guerra: os desocupados e os soldados.

O terreno onde Vila Desocupación foi erguida era esquivo como uma cobra de água. Quando chegava a época das chuvas, transformava-se num pântano. Aí acontecia vermos casas a serem desfeitas pelos aluviões. Os desocupados ainda mais desocupados sem um tecto que não fosse o tecto de toda a Humanidade e ao qual chamamos, faça chuva ou faça sol, de céu.

Certo dia, os desocupados descobriram um depósito municipal de blocos de granito. Aí, o Governo cedeu: deixou que partissem as pedras e pavimentassem as suas ruas. E alargaram algumas delas para que fossem avenidas e fizeram uma praça no centro da cidade. Depois descobriram os caminhos dos talhantes autorizados: iam de burro buscar quilos de ossos esvaziados de carne para fazerem caldos que soubessem a carne. Finalmente, fizeram do rio de La Plata seu aliado: e os pescadores começaram a alimentar-se a peixe e criarem condições para chamarem de volta as mulheres e os filhos.

À medida que os casebres iam sendo demolidos, os descamisado de Vila Desocupaación juntaram-se num terreno com centenas e centenas de colchões lado a lado como se se tratasse de um cemitério a campas abertas. Durante a noite, dormiam como mandava o sono; durante o dia iam à procura de algo que os deixasse dormir à noite, sem pesadelos.

O fedor dos corpos suados espalhou-se como uma peste. Piolhos, percevejos, ratazanas. Os colchões de palha eram um nojo que deixavam quem lhes chegasse perto à beira do vómito. A polícia, de cada vez que era chamada para dirimir um conflito, queixava-se de que só munida com máscaras antigases. Um dia, a paciência chegou ao fim: tocaram fogo a tudo. O calor tratou de transformar o dormitório num inferno do qual saíam guinchos, o crepitar da palha e, até, um ou outro grito. Os homens viciados em nada fazer fugiram de vez. Sobraram poucos. Os poucos que sonhavam com Ciudad Esperanza e odiavam Vila Desocupación. Partiam de manhã em busca de trabalho, por mais mal pago que fosse, e cantavam para ganhar coragem: “Ya vendran tiempos mejores/No te aflijas Catalina…” Catalina: como se fosse o nome de todas as mulheres juntas em apenas três sílabas. Mulheres que não tinham lugar na cidade da tristeza.