Até hoje não há quem nos consiga contar todos os pormenores da morte de Ottavio Bottechia. Cada um atira aos sete ventos a teoria que lhe agrada e isso é tão típico do género humano como o visco é próprio dos batráquios. Oitavo filho de uma família indigente de nove irmão, Ottavio praticamente não frequentou a escola. A fome grassava lá por casa e cada um tinha de contribuir como pudesse. Era ainda um menino de seis anos quando se tornou aprendiz de sapateiro. Como era de têmpera rija e alargava a olhos vistos, o pai empurrou-o para a construção civil. É por essa altura que aprende a andar de bicicleta e fica absolutamente fascinado com aquela ideia de equilíbrio em movimento que lhe marcará a vida para sempre.
A I Grande Guerra atira Ottavio Bottechia para os bersaglieri e para os ideais socialistas. Criados no Reino da Sardenha, onde o dinheiro abundava tanto como em casa dos Bottechia, em San Martino de Colle Umberto, não longe de Veneza, os bersaglieri, como os seus chapéus largos, de penacho orgulhoso, ganharam o respeito de toda a Itália, sobretudo no período da Unificação, quando entraram em Roma pela Porta Pia, no dia 20 de Setembro de 1870, exibindo um garbo soberbo, de fazer inveja a qualquer outro grupo militar.
Na I Grande Guerra, dos 210 mil elementos dos bersaglieri enviados para a frente de combate, 32 mil foram mortos e 50 mil ficaram estropiados, o que serviu para que o respeito em seu redor crescesse à velocidade com que o sangue se espalhava pelas trincheiras. Ottavio viveu peripécias durante o conflito dignas de fazer inveja a Miguel Strogoff e Rocambole juntos. O facto de se sentir tão confortável em cima de um selim como na sala lá de casa, fez com que fosse nomeado correio. As bombas rebentavam à sua volta e as balas silvavam-lhe aos ouvidos enquanto Bottechia pedalava furiosamente por entre cadáveres e moribundos que gritavam de forma lancinante. Apanhou malária, chegou a ser capturado, foi suficientemente expedito para escapar aos seus algozes e pôs-se ao fresco, regressando às linhas italianas onde foi tido como um herói e medalhado a preceito.
De volta ao conforto do lar, que não era tão confortável como isso, convenhamos, voltou à sua função de carregador de de tijolos, vivendo uma existência sem história junto da sua mulher e dos seus três filhos. Mas a sua fama de ciclista emérito já não lhe permitia uma existência sossegada como seria sua vontade. Certo dia, bateu-lhe à porta um certo Teodoro Carnielli, presidente de um clube da região do Venetto. Trazia-lhe uma oferta: uma bicicleta moderna, nova em folha. E trazia-lhe um desafio: participar em provas velocipédicas.
Em 1923, Ottavio Bottechia participa na Volta à Itália. Não tem equipa, corre sozinho, obtém um espantoso quinto lugar. Num abrir e fechar de olhos, convidado pelo grande ciclista francês Henry Pélissier, junta-se à equipa do Automoto-Hutchison.
Ottavio tem 29 anos e um mundo inteiro na sua frente. Finalmente, consegue aprender a ler e a escrever, coisa que a escola não lhe dera. Deixa-se encantar pelo panfletos de propaganda anti-Mussolini, desperta a sua alma revolucionária, está disposto a lutar novamente, agora em nome da Liberdade. Nesse mesmo ano, garante o segundo lugar na Volta a França, logo atrás de Pélissier, e a sua fama percorre toda a Itália como uma aragem fresca do Adriático. O próprio Mussolini está encantado com Ottavio, representante dessa classe que fez de Roma dona de meio mundo.
No ano seguinte, Ottavio foi supersónico: ganhou a Volta a França carregando com a camisola amarela da primeira à última etapa. Nunca um italiano ganhara o Tour. Bottechia ganhou novamente, na edição seguinte. E, de um momento para o outro, a vida começou a correr-lhe mal.
No dia 23 de maio de 1927, o seu irmão Giovanni foi atropelado enquanto pedalava na sua bicicleta. Morte imediata. No dia 3 de junho, Ottavio é encontrado por um camponês. Enfiado num fosso macabro, com dificuldade em exprimir-se, está gravemente ferido e completamente ensanguentado. Tem vários ossos fraturados além de um fortíssimo traumatismo craniano. Supõe-se, a principio, que lhe terá sucedido a mesma coisa do que a Giovanni, mas, encontrada não muito longe, a bicicleta de Ottavio não apresenta qualquer dano. É carregado para a taberna mais próximas, mas não se consegue exprimir. O padre da terra dá-lhe a extrema-unção. Segue para o hospital de Gemona mas só para morrer embrulhado em lençóis limpos e num mistério para o qual ninguém tem resposta. Uns anos mais tarde, um mafioso italiano de Nova Iorque, confessou no leito de morte ter assassinado os dois irmãos Bottechia, Ottavio à pedrada. «Estava a roubar uvas», justificou, embora não haja uvas em Junho
No seu funeral não apareceu ninguém. Havia demasiado medo. Sussurrava-se a cada esquina que fora eliminado pelos fascistas. Tornara-se demasiado incómodo com a sua popularidade.