O homem do almanaque

John Wisden era tão pequenino que quem o via num campo de críquete desconfiava que andava a estudar para ser anão

Com apenas 1,62m, John Wisden, filho de um construtor civil que parecia, ele próprio, um edifício de betão armado, dava a sensação de que fazia os possíveis para aprender a ser anão. O pai tinha-lhe estima mas não o levava a sério. No meio de uma família abrutalhada, Wisden não parecia ter grande utilidade. Por isso, quando morreu, William, o pai, claro, não John, não houve tempo para lágrimas. Os tios viram-se livres do pequenote num  abrir a fechar de olhos. De Brighton foi de cambulhada para Londres sob os auspiciosos generosos de um gentleman de posses, Thomax Box, que por acaso era, igualmente, além de um cavalheiro bondoso, um jogador excecional de críquete, considerado por muitos como o melhor wicketkeeper do seu tempo, que jogava o Marylebone Cricket Club, fazendo uma perninha, aqui e ali, nas seleções dos Condados de Surrey e Hampshire, e atuando com regularidade na seleção de Sussex, a sua terra natal.

Nesse jogo tão aborrecidamente britânico que é o críquete, de tal forma extenso que chega a meter uns intervalos para se escorropicharem uns chazinhos e um ou dois golos de brandy, old boy, um wicketkeeper tem a extrema responsabilidade de guardar, com risco da sua própria vida, if you know what I mean, aqueles três pauzinhos paralelos, reunidos por um travessão superior e qual podíamos chamar de balizas, se não soasse tão grotesco. 

Pois bem, Box afeiçoou-se ao miúdo, apesar deste ter uns termos um bocado pacóvios. Tratou de fazer com ele o que Harry Higgins fez com Eliza Doolittle em Pigmalião, de George Bernard Shaw: tirou-lhe os tiques brejeiros de campónio e pô-lo a jogar críquete mal descobriu que o garoto possuía uma série de características físicas que o aconselhavam para o jogo. Era rápido como um laparoto e tinha uma mão esquerda de rara potência. Com somente dezasseis anos, estreou-se pelo condado de Sussex, um daqueles lugares onde estava destinado a ser feliz. O quase anão John Wisden pesava exatamente 44 quilos, quem o visse sentado ao lado de Tom Box, diria que não passava de um boneco de ventríloquo. O críquete tinha-se tornado de tal forma a sua vida que chegou a namorar a irmã de George Parr, conhecido como O Leão do Norte, um jogador de classe finíssima de Nottinghamshire, embora a boda não se tenha realizado por ausência da noiva que, de forma bastante incomodativa, resolveu, com uma total respeito pela própria saúde, morrer na véspera do acontecimento. Pode ter sido sem intenção, mas tornou-se particularmente rude, até porque Wisdon parece que estava sinceramente embeiçado por ela.

The Little Wonder, como lhe chamavam, ainda se manteve mais uns anos no topo do críquete, realizou com o amigo Parr umas incursões à América do Norte, a locais como Montreal, Hoboken, Philadelphia, Hamilton e Rochester, incluídos na equipa do Condado de Middlsex e obtendo vitórias memoráveis. Entretanto, o críquete mudava a sua face e começou a exigir outro tipo de atributos físicos que o pequeno Wisden decididamente não possuía.

John podia ser praticamente anão, mas era um fulano esperto, fino como um alho. Não esperou quieto que o críquete o pusesse fora dos campos. Antecipou-se. A meias com o seu amigo e empresário Fred Lillywhite, abriu, revolucionariamente, uma loja de material de críquete, em Leamington Spa, em 1850. três anos mais tarde, a loja ganhou o nome de Cricket and Cigar, um local muito ao gosto dos cavalheiros londrinos e abriu um pub de nome Cricketeers.

Em 1863, apenas com 37 anos, atacado por brutais espasmos de reumatismo, deixou definitivamente os tacos e lançou-se numa atividade que lhe garantiria fama para lá da morte ao publicar o Wisden Cricketers’ Almanack, uma publicação anual na qual todos podiam  ficar a saber tudo sobre que jogador quisessem. Imagina-se facilmente o impacto desta revista pelos grandes adeptos do jogo. Tão grande, aliás, que a revista ainda existe e é um sucesso de vendas. O Wisden, como é conhecido, é tão pormenorizado que se estende por cerca de 1500 páginas (preço de 60 Libras), sempre com a capa amarela que John escolheu. E é a publicação mais antiga do mundo a ser a sair continuadamente.

A cabeça do pequenino John fervilhava de ideias até que um maldito cancro lhe invadiu o cérebro aos 57 anos. Muitos que nunca deixam de comprar o seu almanaque todos os anos, continuam sem saber quem ele foi. O tempo atraiçoa a memória dos homens. O que vale é que temos sempre à mão um almanaque qualquer que nos põe na pista dos desconhecidos. É só folheá-lo e estaremos na posse dos dados que nos faltam. Graças, por exemplo, a alguns homens pequeninos em centímetros mas que não perdem muito tempo a desafiar as leis da física. Como foi o caso de John Wisden. Fico curioso em saber que altura deu a si próprio no lugar onde está arrumada a sua ficha.

afonso.melo@newsplex.pt