Durante muitos séculos, os ingleses gostavam de dizer: «Há nevoeiro sobre a Mancha; o Continente está isolado».
Para a grande maioria dos ingleses, o Continente é a França. E, até certo ponto, a Alemanha.
Deus atribuiu-lhes a graça de serem uma ilha. E, dessa forma, evitou-lhes o sempre desconfortável embaraço de serem obrigados a repartir fronteiras com outros países. «A very wealthy distance, old sport», como diria um cavalheiro que se recusasse a partilhar a sua carruagem de comboio com a populaça. Ah! Para cá da Mancha existe uma disgusting promiscuidade de fronteiras.
Depois veio o Túnel. The Tunnel. The Channel Tunnel. The Chunnel! Com o Tunnel, por mais nevoeiro que haja, o Continente deixou de estar isolado.
50,450 quilómetros de comprimento, dos quais 37,9 debaixo de água. Calais já não é o lado de lá de Dover; agora há também Folkestone.
Para irritação dos ingleses, quem deu o nome ao canal foram os franceses: chamaram-lhe La Manche. Depois, ao engano, nós traduzimos para A Mancha quando correto seria traduzir para A Manga porque, na verdade, manche é um pedaço de uma peça de vestuário. Irritados, do lado de lá, reduziram-no a English Channel. E não há mais conversa.
Jabez Wolfe ainda não era do tempo do túnel. Afinal nasceu a 19 de Novembro do 1896. Mas dificilmente alguém conheceu a Mancha tão bem quanto ele. Pode dizer-se mesmo que era obcecado pela Mancha, ou pelo menos por aquele pedaço mais estreito (não por acaso, o Estreito de Dover) com apenas 33 km a separar a costa inglesa de Dover até o cabo Gris Nez, já em França.
Passou tanto tempo da sua via mergulhado nesse pedaço de mar que só lhe faltou nascerem-lhe guelras e barbatanas dorsais e anais. E, no entanto, representou a maior frustração da sua existência. Uma frustração que ficou registada num livro que publicou em 1937 chamado Swimming Short & Long Distance.
Natural de Glasgow, Jacob Wolfe, de seu nome de batismo, era teimoso como uma velha mula escocesa. No dia 18 de julho de 1906, já com trinta anos, decidiu finalmente enfrentar as águas encarpadas no canal, atirando-se ao mar em Dover. Jabez, como era tratado pelos amigos, era uma figura imponente, com o seu peito largo, em quilha, e os seus braços com largura de pernas. Bateu-se contra as correntes como se a sua vida dependesse disso e até certo ponto dependia. A razão do seu falhanço foi atribuída ao excesso de velocidade com que tentou nadar, sobrevindo-lhe um cansaço insuportável que o levou a desistir.
Se julgam que uma desilusão diminui um escocês orgulhoso, estão muito enganados. Nem uma, nem duas, nem três. Nem dez, sequer. Ou vinte. Wolfe era daquela raça de homens que, quando tinha uma ideia ela já nascia fixa. E a sua ideia fixa era a Mancha, só a Mancha, nada mais do que a Mancha.
Em julho e agosto desse ano de 1906, voltou a mergulhar no canal e voltou a não chegar a Cap Griz-Nez, no Departamento de Pas-de-Calais. Seria frustrante para qualquer um menos para Jabez. Entre 22 de julho e 16 de setembro de 1907, somou mais quatro tentativas de viajar de Inglaterra para França por mar e à custa dos seus próprios braços e da peitaça que tanto engolia litros e litros de oxigénio como, de vez em quando, uns almudes de água salgada.
Entre 1908 e 1909 falhou mais quatro tentativas. Foi utilizando todas as táticas possíveis, ora com um barco a acompanhá-lo onde um amigo que ia gritando palavras de incentivo com um megafone, ora com o major Nicholls noutra embarcação dando-lhe coragem e orgulho ao ritmo das 29 a 32 braçadas por minuto tocando furiosamente uma gaita de foles. Nenhuma das estratégias deu resultado, falhando uma das tentativas por menos de um quilómetro e outras três por cerca de uma milha.
Jabez Wolfe tomou, então, uma decisão drástica para quem é um orgulhoso habitante da Grande Ilha para lá da Mancha. Ao arrepio de todas as convenções, inverteu o percurso. As suas últimas quatro tentativas, espalhadas entre 31 de julho de 1910 e 26 de agosto de 1913, tiveram Cap Griz como ponto de partida e as rochas brancas de Dover como ponto de chegada.
Quero dizer, como espectável ponto de chegada já que Jabez nunca lá chegou, pelo menos à custa de braços, sendo obrigado a fazer os últimos quilómetros na barcaça de apoio. No total, Wolfe fez 21 travessias frustradas do Canal da Mancha, algo que fez dele uma lenda do fracasso.
Quando morreu, em 1943, a Mancha continuava a magoá-lo como uma paixão que não dera certo. Já não viveu para ouvir a voz de Vera Lynn: «There’ll be bluebirds over/The white cliffs of Dover/Tomorrow, just you wait and see…».