Sousa Mendes no Panteão: justifica-se?

Por Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva  Professor Universitário Aristides de Sousa Mendes é apresentado como um combatente contra o antissemitismo do Estado Novo, um mártir. É verdadeira esta ideia? Apresentarei o que sei, de leituras, de decretos, de relatos testemunhais. Quero tornar claro que nada me anima contra Sousa Mendes: procuro apenas tentar compreender.     1.A personalidade…

Por Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva

 Professor Universitário

Aristides de Sousa Mendes é apresentado como um combatente contra o antissemitismo do Estado Novo, um mártir. É verdadeira esta ideia? Apresentarei o que sei, de leituras, de decretos, de relatos testemunhais. Quero tornar claro que nada me anima contra Sousa Mendes: procuro apenas tentar compreender. 
  
1.A personalidade de Sousa Mendes

Sousa Mendes era uma personalidade instável. Católico convicto era, ao mesmo tempo, incapaz de se controlar; teve inúmeros casos extraconjugais (um deles custou-lhe caro porque engravidou uma funcionária de Embaixada e foi suspenso por dois anos); não conseguia cumprir regras e procedimentos porque não trabalhava com regularidade e foi repreendido várias vezes por isso. Tudo isto ocorreu ainda na Primeira República. Era apoiante do Estado Novo e monárquico (um conservador, pois) e não um opositor do Estado Novo. É importante compreender a personalidade de Sousa Mendes: explica muito do que se passou. 

2.A posição do regime quanto aos judeus

Salazar exprimiu-se claramente, pelo menos por duas vezes: uma numa nota para a Embaixada portuguesa em Berlim, em que dizia ser necessário vincar ao Reich que os judeus portugueses eram cidadãos portugueses e não podiam ser perseguidos porque a lei portuguesa impedia que se fizessem distinções em termos de raça. E criticou indiretamente as leis de Nuremberga precisamente por darem tratamento diferente aos nacionais segundo a raça. 

Que o regime não era anti-judeu provam-no várias declarações quer de historiadores judeus que estudaram o período quer as próprias declarações de Adolfo Benarus, presidente da comunidade judaica de Lisboa nessa altura e de outros judeus que viveram nessa época em Portugal. 

Além disso, Salazar permitiu (em 1940) que a a principal associação de ajuda aos judeus transferisse a sua sede de Paris para Lisboa; autorizou a instalação na Madeira de duas centenas de judeus gibraltinos. 
Os judeus que Sousa Mendes trouxe para Portugal à margem da lei não foram expatriados para os países de origem, como seria expectável à luz da lei internacional. Ficaram cá. 

Talvez mais impressionante que tudo o que já disse, o ministro Leite Pinto, que dirigia a linha férrea da Beira Alta, organizou uma linha de migração de Berlim para Lisboa: os comboios iam com volfrâmio e voltavam com judeus.

Tenho esta informação do próprio Leite Pinto. 

E ainda: o embaixador em Budapeste, Carlos Sampaio Garrido, auxiliado por Carlos de Liz-Teixeira Branquinho, estando a Hungria então sob um brutal regime pró-nazi e monstruosamente antijudaico, salvou, com a concordância e apoio de Lisboa e do próprio Salazar, mais de mil judeus dos campos de morte. Fizeram o mesmo que Sousa Mendes, mas de maneira legal, eficaz e, de resto, extremamente corajosa, já que arriscaram realmente a vida dado o regime brutal que vigorava na Hungria. Não foram homenageados agora.

3.A posição do regime quanto aos refugiados

A norma era clara: a qualquer refugiado que quisesse vir a Portugal para sair para outro país ou que, tendo os meios para isso, se quisesse fixar em Portugal deveria ser dado visto. Os outros casos deveriam ser considerados individualmente pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Portugal nunca fechou as fronteiras aos judeus. 

4.O comportamento de Sousa Mendes

Não há dúvida de que ajudou muitos judeus; não terão sido dezenas de milhares, como agora se diz, mas foram muitos. Assinou imensos vistos sem pedir qualquer autorização. Contudo, não foram apenas vistos de judeus que assinou: também emitiu vistos a não judeus ricos e inclusivamente forjou um passaporte. Há quem diga, há quem negue (não sei quem tem razão) que o fez por pressão da amante da altura a troco de dinheiro (que seria dado a uma instituição de caridade mas que chegaria a Sousa Mendes, uma acusação que já lhe tinha sido feita na Primeira República e que pode ter sido meramente retomada). Repito, não sei se é verdade. É verdade que os seus esforços de conceder vistos são estranhos, porque, contrariando as ordens do Governo, não facilitou a saída de grupos de britânicos. Esta sua demora pode até ter estado na origem da punição que lhe foi infligida: Portugal não podia permitir falhas relativamente à Grã-Bretanha dada a importância que tinha, no regime, a aliança inglesa. Mas essa estranheza de critérios pode dever-se apenas à indisciplina do Cônsul. 

5.A punição de Sousa Mendes

Sousa Mendes não foi expulso: foi suspenso (como vimos, já tinha acontecido antes, por questões de saias)  com metade do ordenado, à espera da reforma. No geral, houve grande tolerância para com o seu comportamento muito irregular. 

6.O que tudo isto significa

Volto a esclarecer: nada me anima contra Aristides de Sousa Mendes. Personalidade instável, o seu gesto foi, sem dúvida, generoso; emotivo, não tenho dúvida de que tentou ajudar quem considerou desvalido. Mas, voltando à pergunta inicial, justifica-se a homenagem que o Estado fez à sua memória? Talvez, mas nesse caso outras pessoas deveriam também ter sido homenageadas e não o foram. Porque foi escolhido apenas o seu nome?
Uma explicação superficial seria dizer que se trata de um fenómeno de imitação: «Também temos um Schindler».

Ridículo? Sim, mas útil como afirmação demagógica. 

Num nível mais profundo, contudo, trata-se de um mito de legitimação do atual regime. Ao afirmar que houve um herói português que se levantou contra a perseguição dos judeus e que foi punido por isso, está-se, por implicação, a afirmar que o salazarismo era pró-nazi, o que os historiadores sabem não ser verdade, e antissemita, o que espero ter mostrado ser falso. Mas creio ser essa a razão profunda da desinformação que se criou em torno deste caso tão complexo: descredibilizar o Estado Novo e apresentar a Terceira República como um triunfo contra as forças do mal.  

Não são raras estas manipulações da história para legitimar regímenes. Numa sociedade aberta, têm, contudo, de ser confrontadas. 

Foi o que aqui tentei fazer.