Para além de toda a circunstância concreta

Em 2015, quando António Costa engendrou e montou a ‘geringonça’, anunciou aos portugueses que desta vez, sim, desta vez é que o ‘Muro’ (de Berlim)  tinha sido definitivamente derrubado. 1989 não passara de um ensaio ou um episódio inconclusivo: desta vez, sim, consumara-se realmente e simbolicamente a queda do ‘Muro de Berlim’, um processo histórico irreversível…

Por Maria de Fátima Bonifácio
Historiadora 

Em 2015, quando António Costa engendrou e montou a ‘geringonça’, anunciou aos portugueses que desta vez, sim, desta vez é que o ‘Muro’ (de Berlim)  tinha sido definitivamente derrubado. 1989 não passara de um ensaio ou um episódio inconclusivo: desta vez, sim, consumara-se realmente e simbolicamente a queda do ‘Muro de Berlim’, um processo histórico irreversível gloriosamente efectivado por ele ao apresentar-se com a sua maioria parlamentar composta do Partido Socialista aliado à extrema-esquerda portuguesa, um feito surpreendente e espectacular que até ali os nossos políticos,  incompetentes e míopes,  não tinham conseguido oferecer aos portugueses e ao Mundo. Mas que ele, António Costa, com a sua larguíssima visão e insuperável habilidade negocial, podia exibir como um triunfo pessoal,  historicamente glorioso: a inclusão da extrema-esquerda no chamado ‘arco da governação’. Por outras palavras: Costa cometera a proeza de converter o PCP e o Bloco à Democracia, congregando este dois históricos outsiders no seu regaço socialista. 

Se Costa fosse menos cabeça no ar, teria reparado que há uns anos, num aniversário da queda do Muro de Berlim, o Avante! titulara a toda a largura da primeira página: A chamada queda do Muro de Berlim. Neste extraordinário artigo de denegação da verdade objectiva mais elementar, daquela que se palpa e entra pelos olhos dentro, o diligente camarada Abrantes explicava que o tão saudado acontecimento não passara de um soluço da História. Esta prosseguiria, indiferente aos sobressaltos de uma Humanidade alienada e ignorante do seu próprio destino, em direcção à sua finalidade pré-determinada e revelada por Marx no séc. XIX: a sociedade comunista, sem classes, igualitária, justa, sem explorados nem exploradores. O alheamento de Abrantes em relação à realidade deveria ter ser lido por Costa como uma premonição do que agora se está a passar: o Muro que ele, precipitadamente, julgara ter derrubado, nunca deixou de ‘lá’ estar e lá  está para durar. Não há como reconciliar duas visões do mundo irreconciliáveis, sobretudo quando uma delas releva da pura fé, insusceptível de um escrutínio racional empiricamente fundado. A Utopia não é discutível e muito menos negociável. 

O marxismo é uma religião, laica embora, fazendo lembrar os milenarismos da Idade Média. Os seus oficiantes são o Partido, uma entidade sagrada, e dantes a sua Sé apostólica era Moscovo. Hoje em dia Moscovo renegou, mas isso não abala a fé dos crentes, tal como os pecados do Vaticano não fazem vacilar a fé dos católicos. Este é  o ponto nevrálgico que se tem de entender: do ponto de vista da fé comunista, a realidade objectiva não interessa para nada – é um mero e efémero produto do desatinado esbracejar humano num momento de desorientação e talvez dúvida passageira (e imperdoável) a respeito do Catecismo. A doutrina e sobretudo a crença, essas sim, interessam tudo. De nada adianta provar que Estaline dizimou dezenas de milhões de camponeses ucranianos, ou que nas prisões soviéticas se  pisavam corredores ensanguentados.  Tudo isto são tropeções da História, naturais e necessários, porque a sublimidade dos fins justifica todos os meios. E os fins são, em última análise, a harmonia universal de todos os humanos, um Mundo sem contradições, sem fricções, sem conflitos; um Éden em que a Humanidade  se une num abraço universal e coloca um ponto final na História.  Por isso, para lá de toda a circunstância concreta, a argumentação empírica é radicalmente inútil: ela situa-se no plano das realidades palpáveis, verificáveis, enquanto o marxista se situa no plano da Utopia. 

As Utopias são mitos – histórias ‘verdadeiras’ –  decorridas fora do tempo histórico ou profano. São por definição intemporais; pairam numa eterna Eternidade.  Por isso o camarada  Abrantes se referia à ‘chamada’ queda do Muro. Claro que ele não ignorava que o muro tinha, de facto, sido derrubado, mas este acidente concreto, acontecido num momento concreto, situava-se dentro do tempo histórico e concreto que precisamente lhe era alheio. Abrantes voga num tempo intemporal, sem princípio nem fim, onde tudo o que acontece de positivo é irrelevante, como se não tivesse ocorrido. Temos histórias pungentes de comunistas que estavam presos quando Estaline morreu. Eram inocentes, sabiam-se inocentes, e, no entanto, quando o símbolo máximo da Utopia, quando essa lanterna privilegiada e sagrada se apagou, choraram – sem nada de que se arrependessem. Haverá algo mais irracional do que isto? É só ler Darkness at Noon de Koestler. Se Costa tivesse lido, ou se, tendo lido, tivesse gasto na sua juventude alguns minutos a pensar na tremenda lição que o livro nos dá, não se sentiria agora tão traído ou abandonado pelo PCP, que ele, ingenuamente, pensara ter trazido para o seu regaço socialista – para dentro do ‘arco da governação’. 

Ao PCP não importa por aí além saber se as eleições lhe convêm ou não; as contabilidades eleitorais não são para ele decisivas. Decisivo é derrotar o capitalismo, e derrotar o capitalismo, nesta altura, após anos de colaboracionismo, era derrotar António Costa, que teve a veleidade de pensar que os comunistas teriam desistido da sua Utopia. Outra maneira de derrotar o primeiro ministro capitalista seria fazê-lo engolir todas as medidas que exigiram, aparecendo ao público como tendo metido o governo no bolso. Ou seja, estabelecer na prática e realidade, por intermédio de António Costa, uma governação comunista Mas isto seria realmente inaceitável pelo Partido Socialista e pelo próprio António Costa, independentemente das restrições impostas por Bruxelas. Neste caso impensável, o PCP não só derrotaria António Costa como também Bruxelas, o Templo do Capitalismo. O nosso Abrantes sorriria perante este gigantesco avanço da História…