Vicente Piera não foi soldado, mas viveu a guerra. Essa terrível Guerra Civil de Espanha que somou mais de 500 mil mortos, tantos deles fuzilados pelo exército franquista ao qual ninguém conhecia a piedade. Mas isso foi mais tarde. Nascido em 11 de junho de 1903, em Barcelona, Vicente Piera Pañella foi sempre um libertário. Tinha o futebol no sangue. Era apenas um garoto quando começou a jogar no Centre d’Esports de Sants. O seu pé direito era desconcertante. A bola colava-se a ele como se fosse coberto de resina. E só ele lhe dava ordem para prosseguir o seu caminho a partir do momento em que considerava que ela fazia falta noutro lado, sobretudo no fundo da baliza dos adversários.
Em 1922, com apenas 19 anos, estava em Lisboa. Portugal recebia a Espanha e o selecionador espanhol, Julián Ruete mandou que doze jogadores se aprontassem e saíssem para o aquecimento. Em cima da hora do jogo ter início decidiria qual deles seria descartado da equipa principal. Foi, de certa forma, uma revolução. Porque Ruete, no último minuto, disse com a sua voz autoritária: «Santiago Bernabéu, tú no juegas!». E enquanto o peso do descarte caía sobre o vaidoso jogador que viria a ser o presidente do Real Madrid, a alegria do jogo foi entregue a Vicente que, ao minuto 60, fez um dos dois golos espanhóis da vitória.
Desde que se transformara em jogador que Piera parecia, muitas vezes, não entender o jogo de conjunto. Chamavam-lhe Cavalo Bravo, Cavalo à Solta, podia ter sido uma personagem desses escritores catalães de imaginação prodigiosa, Eduardo Mendoza, Mercè Rodoreda, Manuel Váquez Moltalbán. Ou melhor ainda, personagem rebelde da mestra das rebeldes personagens, Ana María Matute, nascida em 1925, relatadora de batalhas e do que ia por dentro dos que combatiam nessa guerra entre irmãos, autora de Primera Memoria, Los Soldados Lloran de Noche, La Trampa, atravessando a estrada da novela para o conto com Los Niños Tontos, Tres y un Sueño, El Verdadero Final de la Bella Durmiente e Al niño que se le Murió el Amigo. Poesia em prosa como dizia o jornalista Jesús Ramos sobre Vicente, aquele que dançava com uma bola nos pés como saltasse a fogueira dos demónios e quem deram a alcunha de La Bruja.
O rebelde Piera não ouvia nada do que os mestres que lhe queriam ensinar. No Centre d’Esports de Sants arranjou um conflito sério porque se recusava a jogar a extremo direito. Quando, aos 17 anos, foi contratado pelo Barcelona, escutou com os nervos a bulirem-lhe como agulhas de pinheiro o presidente Juan Gamper gabar-se para a imprensa: «Hemos encontrado el extremo derecho que estábamos buscando hace tiempo».
O treinador, o inglês Greewell, olhou para o seu físico meio raquítico, para as suas pernas que pareciam caniços, e impôs-lhe um trabalho diário para aumentar decisivamente a sua capacidade de choque. Vicente limitou-se a responder: «A mí que me den una pelota y me dejen de tonterías y cuentos tártaros». Num jogo amigável contra o Sparta de Praga, depois de ter passado meia-hora a fazer gato sapato do defesa que o marcava, estoirou como uma castanha e passou a hora seguinte a ser massacrado com cargas sucessivas de pancadaria que o deixaram de rastos. Foi aí que percebeu que não lhe bastava ser La Bruja. O Cavalo à Solta chorou à noite como os soldados Ana María Matute. E mudou de vida, fez corpo, tomou conta do lado direito do ataque do Barcelona até 1933, três anos antes de começar La Cruzada.
Durante umas festividades locais, o Barcelona defrontou o Vic que pedira emprestado ao adversário o seu guarda-redes lendário Ricardo Zamora, o rei das zamoranas. Por ordem de Garcia, o capitão, de cada vez que os avançados do Barça se aproximavam da baliza onde estava o seu companheiro de equipa, voltavam para trás, recusando-se a chutar ao golo. Zamora impunha um respeito impossível de contrariar. Não seriam os seus apoderados do Barça a sujeitá-lo a ir buscar bolas dentro da baliza. O público enfureceu-se. Ou, como dizem em Espanha, cabreou-se. A confusão não tardou a instalar-se no estádio, houve alguns que ameaçaram entrar em campo para agredir os jogadores da própria equipa, Zamora tentava apaziguar toda a gente com a sua figura grande, vestida de negro, Vicente Piera saltitava de um lado para o outro como um galito de combate, as farripas do cabelo caindo-lhe sobre os olhos que brilhavam de contentamento perante o caos que se abria na sua frente. Atingia o ponto mais alto da sua incontrolável rebeldia. A Guardia Civil entrou em ação e tratou de acusar os jogadores do Barcelona de boicotarem um espetáculo para o qual muitas centenas de pessoas tinham pago o seu bilhete. Toda a equipa foi parar à esquadra e passou a noite no cárcere como castigo para a trafulhice. Esgotada a excitação, Vicente Piera, o rebelde dos rebeldes, dormiu tranquilo como se nada se passasse…