Espanha vira barril de pólvora

‘Há o desaparecimento de consensos essenciais’, nota Farias Ferreira, assistindo ao crescendo da instabilidade.

Espanha virou barril de pólvora, com crescente contestação social, greves sucessivas nos mais diversos setores, erupções da chamada violência callejera e crises políticas. 

São convulsões tão recorrentes que já mal viram notícia fora das fronteiras de Espanha. 

Contudo, o que não falta é preocupação quanto ao futuro dos nuestros hermanos.

Há semanas que os metalúrgicos de Cádiz estão furiosos com os seus cortes salariais, tendo protestado ao lado de estudantes, no final do mês passado, acabando varridos por balas de borracha, gás lacrimogéneo e cargas policiais; dias depois, por sua vez, a Guarda Civil e sindicatos de Polícia de toda a Espanha também saíram à ruas, apoiados por estrelas da direita, como a própria presidente da comunidade autonómica de Madrid, Isabel Díaz Ayuso.

No que toca à Polícia, mobilizava-se contra o fim da ‘Lei Mordaça’, que permite multar os meios de comunicação por difundirem imagens não autorizadas de agentes, mesmo que cometendo um delito, e limitam manifestações. 

Entretanto, operários de duas fábricas galegas entraram em greve e toda a região de La Marina se juntou, enfermeiros ameaçam fazer o mesmo e os camionistas prometem parar Espanha nas vésperas do Natal.

Aparentemente, o fator económico que melhor poderia explicar este crescendo da instabilidade social seria a subida do custo da eletricidade, acompanhado pelo aumento do preço de bens essenciais que isso acarreta. 

No entanto, também há alguns indicadores positivos, como a queda 2,28% na taxa de desemprego espanhola em novembro, batendo recordes. 

Ainda assim, «por agora»,  sentiu necessidade de escrever uma jornalista do El País,  ilustrando o descontentamento, «as revoltas não anunciam outro 15-M». Trata-se de uma referência às gigantescas manifestações espontâneas de 15 de março de 2011, que inundaram praças um pouco por todo o país. Seria daí que surgiria o Podemos, um partido – em tempos anticapitalista e que hoje está no Governo do PSOE, encabeçado por Pedro Sánchez – que se chegaria a afirmar como terceira força política, rompendo com décadas de bipartidarismo. 

A questão é que agora «há insatisfação em certos setores sociais, mas por motivos distintos e com inclinações muito diferentes», considera Marcos Farias Ferreira. «É explosivo. E é instrumentalizado por vários setores, para reivindicar com os seus interesses mais particulares, como no caso das associações de polícias», exemplifica.

Para o professor de Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP), «há uma crescente desagregação de Espanha. Estas queixas articuladas umas às outras geram muita insatisfação», explica ao Nascer do SOL

Contudo, «essa não é uma insatisfação em que vem tudo do mesmo lado, ao contrário do que acontecia em 2011. Não é algo que se canalize da mesma maneira para o surgimento de forças sociais e políticas de contestação», salienta o professor do ISCSP. 

Ao que estamos a assistir, mais do que o surgimento de um novo sujeito político, é ao pulverizar da política espanhola, com a imprevisibilidade e a instabilidade que isso acarreta. 

«É um sentimento que se tem avolumado em Espanha nos últimos anos», considera Farias Ferreira. «Há um desaparecimento de consensos essenciais que, aparentemente, estavam muito bem consolidados», continua professor de Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP). 
Está em quebra «aquilo a que muitos chamavam o espírito de 1978», a aceitação da Constituição que foi deixada pelos franquistas, a troco da transição para a democracia, montada «em torno desta organização territorial, do sistema político autonómico, do direito à língua. Tudo isso está em reconsideração», salienta Farias Ferreira. «Há quem queira mantê-lo, mas também há mais gente a querer uma República do que anteriormente. E há até quem queira um sistema mais centralizado, sem autonomias» 

Tensão continua alta na Catalunha 
Na prática, o que não faltm são motivos de insatisfação. 

Na Catalunha, por exemplo,  as tensões continuam em alta, apesar das fraturas dentro do movimento independentista, enquanto os nacionalistas espanhóis exigem maior pressão sobre estes; o PSOE tem tido desavenças com os seus parceiros de coligação do Unidas Podemos, além de ter de contar com uma desconfortável aliança com independentistas bascos; à direita, o Partido Popular (PP) tenta calibrar a relação com o Vox, com aproximações pontuais, sabendo que provavelmente precisará do apoio da extrema-direita para chegar ao poder. 

Além disso, ainda temos a quebra na confiança na monarquia espanhola, um outro consenso oriundo de 1978 que foi quebrado, após ser fragilizado pelos escândalos em torno do Rei emérito, Juan Carlos, acrescenta o professor do ISCSP. 

E a tudo isto somam-se fatores como a crescente influência do negacionismo quanto à covid-19, muito mais presente entre os nossos vizinhos do que em Portugal.

As restrições devido à pandemia até se viraram um tópico quente eleitoral, com a presidente da comunidade autónoma de Madrid, Isabel Díaz Ayuso, do PP, a recusar aplicar as restrições que exigia o Governo central. A manobra correu-lhe muito bem – Ayuso teria uma vitória estrondosa nas eleições autárquicas de maio, apostando em posicionar-se próximo do Vox e afirmando-se como estrela em ascensão do PP.

«Há ainda outro fator que ajuda a explicar a tensão, que são as questões de género, os temas de identidade», ressalva Farias Ferreira, relembrando o combativo movimento feminista e LGBT+ espanhol, detestado pelos conservadores. «É uma área que tem sido priviligeada por este Governo, sobretudo pelos ministros mais à esquerda. Mas que conta com muita oposição pela direita, é algo que rejeitam liminarmente».

Ayuso mais uma vez na frente
Mais uma vez, é Ayuso que lidera a carga. A presidente da comunidade autónoma de Madrid já assumiu que quer mudar as leis de proteção da comunidade LGBT+, que há quatro anos apoiou, alinhando-se com essa proposta do Vox.   
«Mesmo dentro direita há uma luta  muito grande pela liderança desse bloco. Porque entre o Vox e o Partido Popular a diferença nas sondagens não é assim tão grande», nota o  professor do ISCSP. Para já, a instabilidade parece ter-se tornado um fator quase incontornável da política espanhola. 

«2011 foi a abertura da fragmentação partidária, ao longo dos anos seguinte. Mas hoje há uma recomposição, tanto à esquerda e como à direita. Provavelmente nas próximas eleições vamos ver dois blocos mais coesos», antevê Farias Ferreira. «Mas também mais opostos, com uma agenda à esquerda mais claramente a favor de novos consensos sociais, e à direita mais entrincheirados no nacionalismo espanhol, com princípios mais conservadores».