Harry Potter. A “queda da varinha” de J.K. Rowling

Já passaram 20 anos desde que nos enfeitiçámos pelo universo fantástico de Harry Potter. Contudo, num ano em que se celebrou o seu vigésimo aniversário, fala-se ao mesmo tempo de uma reedição mais “inclusiva”, tudo graças à gigante onda de acusações de transfobia contra a sua criadora – J.K. Rowling. 

Mesmo que não sejamos apreciadores de feitiçaria, ou mesmo que não tenhamos assistido aos oito filmes que compõem aquela que é uma das sagas mais conhecidas do mundo, a verdade é que não existe universo mais mágico que o de Harry Potter e é difícil que nunca tenhamos ouvido falar dele.

Já se passaram 20 anos desde que, na Estação Kings Cross, em Londres, “corremos” para trespassar a parede entre as plataformas 9 e 10, chegando à 9¾ e viajando rumo a Howgarts, juntamente com Ron Weasley, Hermione Granger e Harry Potter, os três protagonistas que nos acompanham deste Harry Potter e a Pedra Filosofal, filme lançado em 2001 até Harry Potter e os Talismãs da Morte, filme de 2011, que meteu fim à sequela.

No primeiro dia do ano, a plataforma de streaming, HBO Max, fê-los regressar, com o objetivo de comemorar o vigésimo aniversário da primeira produção, juntamente com inúmeros membros do elenco. Neles, os fãs puderam assistir a entrevistas à equipa presente nos cenários originais do castelo recordando histórias de bastidores e, puderam ainda ficar a conhecer pormenores da adaptação dos livros da escritora britânica J.K. Rowling, contados pelos atores em conjunto com Chris Columbus – realizador dos dois primeiros filmes e produtor do terceiro.

Mas ao mesmo tempo que os comemoramos, muitos têm sido aqueles que os contestam, quase como se tivessem mudado a ideia e opinião que formaram em criança. E, a “cabeça” por trás deste “universo fantástico”, tem sido a principal razão, já que desde o ano passado tem sido acusada de transfobia e perseguida por elementos da comunidade LGBTI+ em todo o mundo.  

Uma versão mais "inclusiva" Apesar de fazerem parte da sua ficção as mais estranhas criaturas, feitiços, poções, formas e cores, para os críticos da autora, o seu “mundo fantástico” não tem assim tanta variedade no que toca a coisas “realmente importantes” como, a identidade de género, a cor da pele ou a orientação sexual.

E, por isso, ao que parece, há já quem tenha pensado um projeto sério para a realização de uma reedição dos filmes da saga de um ponto de vista “mais inclusivo”. Na realidade, a ideia foi apresentada esta semana por produtores dos EUA: criar uma nova versão dos filmes, veiculada em websérie, que começará a ser gravada entre junho e julho e que tem alguns requisitos “especiais” para os seus castings.

Por exemplo, o papel de James Potter (pai do jovem feiticeiro protagonista), exige um ator “asiático, negro, descendente de africanos, etnicamente ambíguo, multirracial, nativo americano, latino, hispânico, do Médio Oriente, do sul da Ásia, indiano ou das ilhas do Pacífico”. Já Lily Evans, mãe de Harry, tem de ser alguém que não seja  “conforme as convenções de género”, ou seja, “não-binário ou transexual”.

O mesmo vale para outros papéis como Sirius Black, que não pode ser interpretado por um ator branco, por exemplo. Remo Lupin, professor de Defesa Contra as Artes das Trevas, não terá de ser um homem, mas Peter Pettigrew, aliado de Lord Voldemort, terá de ser interpretado por uma pessoa “não de acordo com os cânones de género”, ou seja, “homem não-binário ou transgénero”.

Apesar de ainda aguardarem uma resposta judicial de Rowling e, por isso, não se saber se o projeto será efetivamente realizado, os produtores dizem-se “muito sérios” e já contrataram um famoso agente de elenco em Los Angeles. “Tentámos refletir a diversidade que existe dentro da comunidade de fãs nos personagens que eles tanto amam, para que haja pessoas de todas as cores, que existam ligações queer e que também vejamos pessoas de diferentes religiões”, afirmou Megan Mckelli, produtor de vídeos no TikTok e uma das pessoas por trás do projeto, citada pelo jornal espanhol El Mundo. 

O "cancelamento" de Rowling As críticas contra J.K. Rowling começaram em junho de 2020 depois da escritora ter feito um comentário contrário a um artigo de opinião do site de desenvolvimento global Devex intitulado “Criar um mundo mais igualitário pós-Covid-19 para as pessoas que menstruam”.

Para a autora de Harry Potter, o termo “mulheres” devia ter sido usado na frase, o que gerou protestos da comunidade trans.“’Pessoas que menstruam… Tenho a certeza de que costumava haver uma palavra para essas pessoas. Alguém me ajude? Wumben? Wimpund? Woomud? (modificações propositais da palavra “woman’”, que significa “mulher” em inglês)”, escreveu no seu Twitter, na altura. Rapidamente muitas foram as vozes que alertaram que as visões de Rowling “igualavam a feminilidade à menstruação” – sendo que há muitos homens transexuais que menstruam, e muitas mulheres trans que não.

“Consegue escrever e inventar um mundo mágico inteiro, mas não consegue entender que homens transexuais existem? Eu não menstruo desde 2017 – a minha feminilidade não existe desde que eu não tenho menstruação?”, interrogou  a autora britânica e colunista de relacionamentos, Beth McColl. Contudo, Rowling, de 56 anos, contestou as acusações de que estaria a ser “transfóbica”, defendendo que o seus comentários não tiveram o objetivo de ofender a comunidade transexual, apenas sublinhar que “o sexo é real e tem consequências vívidas”. 

Uns dias depois, a escritora partilhou um longo texto no seu site em defesa dos seus comentários e sobre a sua postura relativamente à identidade de género. Na partilha, a autora afirmou que se interessa pelo assunto por ser “sobrevivente de violência doméstica e de abuso sexual”: “Estou sob olhares públicos há 20 anos e nunca falei publicamente sobre ser uma sobrevivente de violência doméstica e de abuso sexual (…) Não queria reivindicar propriedade exclusiva sobre uma história que também pertence à minha filha (do primeiro casamento). No entanto, há pouco tempo, perguntei-lhe como se sentiria se eu fosse publicamente honesta sobre essa parte da minha vida, e ela encorajou-me a partilhá-la”, revelou.

No texto, J.K. faz questão de sublinhar  que não dá a conhecer esta parte negra da sua história na tentativa de “conseguir simpatia”, mas sim “em solidariedade ao número gigantesco de mulheres que têm histórias como a sua, que foram difamadas como intolerantes por terem preocupações com lugares para um só sexo”. “Pessoas trans precisam e merecem proteção. Como mulheres, elas têm mais chances de serem mortas por parceiros sexuais. Mulheres trans que trabalham na indústria sexual e especialmente mulheres trans de cor, estão particularmente em risco. Como toda outra sobrevivente de violência doméstica e abuso sexual que conheço, eu não sinto nada além de empatia e solidariedade por estas mulheres que foram abusadas por homens”. Apesar disso, a escritora não deixa de defender que alguns lugares devem manter as “separações baseadas no nascimento”. “Ao mesmo tempo, não quero que quem nasceu como mulher fique menos segura e, quando abres as portas do balneário a qualquer homem que acredita ser uma mulher, estás a abrir a porta a qualquer homem que deseje entrar. Esta é a verdade!”, frisou. 

Mas pouco tempo depois, voltou a ser acusada, precisamente pelas mesmas razões. Em dezembro, mais uma vez no Twitter, esta partilhou um artigo do jornal The Times que citava que a polícia havia afirmado que começaria a registar abusos sexuais cometidos por criminosos com genitais masculinos como “mulheres”, se estes “se identificassem como feminino”. “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força. O indivíduo com pênis que abusou de ti é na verdade uma mulher”, escreveu ao compartilhar o post.

Em seguida, a autora recebeu diversas críticas: “Ódio por pessoas trans, mas flores para abusadores”, comentou um internauta. “Talvez o seu pedido de ano novo devesse ser passar um ano sem tweetar sobre pessoas trans. Há tantos outros assuntos para tweetar. Escolha outra coisa para ficar obcecada”, escreveu outro. “As suas palavras terão um impacto devastador na juventude trans. Devia ter vergonha”, escreveu uma seguidora, que dizia ter J.K. como heroína na sua infância.

Recentemente Rowling fez queixa à polícia escocesa das ameaças que recebe frequentemente. Alguns internautas deslocaram-se até à sua residência em Edimburgo, fotografando-se ao lado da casa e publicando a fotografia, com o endereço claramente visível, nas redes sociais. Por medo, e alegando que os responsáveis pelo ato o realizavam em forma de “intimidação”, a escritora pediu ajuda. Contudo, as autoridades acabaram por concluir que nenhum crime foi cometido.

A opinião dos atores Ao longo deste tempo, foram alguns os atores do elenco de Harry Potter que partilharam as suas opiniões nas redes sociais, defendendo a comunidade LGBTI+, tal como foi o caso de Daniel Radcliffe, que escreveu sobre a dignidade de pessoas transgénero lembrando que “78% dos jovens transgénero e não-binários já foram discriminados pela sua identidade de género”; Emma Watson (Hermione) que frisou ser “desnecessário questionar as pessoas sobre não serem aquilo que dizem ser”; e mais recentemente, Rupert Grint (Ron) que admite sentir J.K. Rowling como uma tia, mas não concorda com tudo aquilo que esta diz.

Será possível efetivamente mudar a história de uma saga como esta? Em 2001, durante a gravação do primeiro filme da saga Harry Potter, a escritora britânica insistiu que fossem apenas contratados atores do Reino Unido, de modo a manter a identidade britânica presente nos livros.

Numa tentativa de cortar quaisquer tentativas de “americanizar” a saga, a escritora, citada pelo jornal Telegraph, disse, nessa altura, que “houve uma série de propostas e ofertas para adaptações” dos livros para o cinema e recusou todas. Inicialmente até disse que não à Warner Brothers e a produtora norte-americana assumiu que a escritora recusara as propostas por questões monetárias e aumentou o valor oferecido pelos direitos.

A autora acabou por aceitar, mas também queria assegurar que possíveis sequelas fossem todas baseadas nos seus livros. Por isso, acabou por manter influência criativa em todas as produções — mesmo após a venda dos direitos por um milhão de libras — participando nas reuniões de pré-produção e lendo todos os esboços do guião. Será que agora olha para o cenário de maneira diferente? Irá a escritora responder aos pedidos dos produtores dos EUA, depois de toda esta controvérsia? Estará a reputação de Harry Potter em perigo?