Nasceu em Santos, à beira do mar, gostava de se estender ao sol na Praia de Itaréré, depois mergulhava e desafiava as ondas, nadando com braçada fácil. Saiu do mar, sacudindo os cabelos negros, sereia de pernas fortes, cantarolando Dorival Caymi: «O mar quando quebra na praia/É bonito, é bonito/O mar… pescador quando sai/Nunca sabe se volta, nem sabe se fica/Quanta gente perdeu seus maridos seus filhos/Nas ondas do mar…». Depois regressava a casa sem saber que um dia também haveria de desaparecer no mar, ou quase.
Quando criança viveu uns anos no Rio de Janeiro. Tinha oito anos quando o pai a inscreveu no Fluminense, numa secção com nome sugestivo, Aprenda a Nadar, e Renata Câmara Agondi aprendeu também a fugir aos fins de tarde para contemplar as águas que vinham bater nas areias de Copacabana, espiando o barquinho ao longe como João Gilberto pelas palavras de Roberto Menescal: «Dia de luz festa de sol/E um barquinho a deslizar/No macio azul do mar/Tudo é verão e o amor se faz/Num barquinho pelo mar/Que desliza sem parar».
Renata era menina feliz de água, música e sol. E tinha um espírito competitivo mais incontrolável do que as vagas que batiam lá ao fundo na Pedra do Arpoador. Colecionava medalhas. As dela, quero dizer, as que ia conquistando em todos os torneios em que participava, o seu peito ancho engolindo litros de oxigénio, sempre uma braçada de ritmo forte que terminava num sorriso traquina de vencedor convencido de si próprio.
Depois voltou a Santos e desistiu das piscinas. Eram estreitas de mais para uma sereia, mesmo que fosse uma sereia de pernas e sem escamas. Queria o mar. O mar que lhe enchia os olhos de azul, o mar de Caymi que matou Pedro, mas ela ria-se da morte do mar, porque o mar era a sua vida: «Pedro saiu no seu barco/Seis horas da tarde/Passou toda a noite/Não veio na hora do sol raiá/Deram com o corpo de Pedro/Jogado na praia/Roído de peixe/Sem barco sem nada».
Renata gostava tanto do mar que o mar de Santos já não lhe chegava. Por isso foi à procura de outros mares. Na Europa, em Itália, quis cumprir a travessia de 36 quilómetros entre Capri e Nápoles. Quis e cumpriu. Levou nove horas, vinte e sete minutos e quatro segundos, assim mesmo por extenso que, nela, era tudo por extenso. Em seguida recebeu, certo dia, vindo de não sei de onde, mas certamente de um lugar maldito, o chamado da Mancha. Renata fazia o que queria naquele jeito de alegria escandalosa de Ivan Lins. Seria a Mancha o seu novo desafio. Partiu para Inglaterra, para Dover, na companhia da sua amiga inseparável, Judith Russo. A decisão estava tomada, não havia nada que a demovesse, nem o contemplar das águas vivas, geladas, maltratadas a vento agreste. Renata queria a Mancha e a Mancha abria-se agora na sua frente como em tempos o mar de Itaréré da sua infância.
Os nadadores que se atiram à água, na Shakespeare Beach, para alcançarem Calais, do lado francês da Mancha, são acompanhados por um barco que leva lá dentro o piloto, o treinador, o copiloto e um fiscal de travessia que denuncia as batotas. Judith era a treinadora. Colin Cook e Graham Featherbee, piloto e copiloto, respetivamente. Renata conhecera-os na véspera quando ficou a saber que o barco que lhe estava destinado se chamava Hilda May e tinha o calado tão alto que dificultava a comunicação com a nadadora e a entrega de alimentos. Mark Edward, um jovem norte-americano, funcionaria como fiscal. Estão apresentadas as personagens da tragédia que se segue.
Renata mergulhou às 8h22 do dia 23 de agosto de 1988. Uma ligeira névoa pairava sobre o canal, o continente estava praticamente isolado. Oitenta braçadas por minuto. Um ritmo alucinante. Num instante, metade da travessia ficava para trás. Depois Renata perdeu-se. Nadou cinco quilómetros sem ter a noção de onde se encontrava. O capitão Cook não tinha experiência, tanto levava o barco na frente de Renata como se deixava ficar para trás. A confusão instalou-se. Com 10h45 minutos de prova, andavam todos à deriva e o fiscal deu ordem para lançar a boia o que significava desistência. Mas Renata não era de desistir. Recusou a boia, continuou a lutar contra as ondas de forma frenética, numa teimosia inconsolável. Lágrimas de raiva corriam-lhe pela cara misturando o sal dos olhos com o sal do mar. Ninguém seria capaz de a fazer parar. A sete quilómetros da margem viu um helicóptero de salvamento pairar sobre si. Mark Edward tinha acionado os meios de urgência. Então, Renata percebeu, finalmente, que não seria capaz de vencer a maldição da Mancha. Deixou-se levar. Um sentimento de desolação tomou conta dela por dentro, um aperto no coração fê-la querer esticar a vista para lá das ondas e só conseguia ver mais ondas sobrepondo-se a outras ondas. No final do dia, no Hospital de Calais, o aperto no coração tornou-se uma punhada e morreu de paragem cardíaca provocada pela exaustão e pela hipotermia. Um sorriso triste ficou-lhe preso na boca. Renata jogada na praia, roída de peixe, sem barco sem nada…