Ucrânia. Com tropas russas a caminho de Donbass, apertam as sanções

Há cada vez mais dúvidas que Putin resista à tentação de conquistar as regiões de Donbass sob controlo ucraniano. As sanções começam a apertar sobre Moscovo, mas a Europa dificilmente sairá ilesa.

Com o anúncio do envio de tropas russas para Donbass, no leste da Ucrânia, para uma suposta missão “humanitária”, pouco após o reconhecimento das repúblicas separatistas, a guerra parece cada vez mais próxima. E Vladimir Putin – decidido a que os seus vizinhos não entrem na NATO, mas também em reafirmar-se como herdeiro do império russo e da União Soviética, como deixou bem claro no seu discurso desta segunda-feira – tem cada vez menos a perder, com parte das sanções económicas prometida pelos países membros da NATO já a começarem a ser aplicadas.

“Não pensei que fosse haver um conflito”, admitiu Valentina Shmatkova, de 59 anos, moradora da vila de Schastya, próxima da fronteira com o território separatista de Luhansk. Como tantos outros habitantes da região, vive com falta de eletricidade e água, contou a um correspondente da France Press. E receosa dos bombardeamentos através da fronteira – tão comuns e esporádicos que são apelidados de “badminton” – que já vêm desde o começo da guerra, em 2014. “Pensei que o nosso Presidente e o Presidente russo fossem pessoas razoáveis e inteligentes”, lamentou.

Tecnicamente, até se poderia considerar que a Ucrânia já estava de novo em guerra. Com o seu reconhecimento das Repúblicas Populares de Donetsk e de Luhansk, o Kremlin rompeu com os acordos de Minsk, que estabeleciam alguma autonomia para a região de Donbass e incluíam o cessar-fogo que pôs fim a uma guerra civil que vitimou mais de 14 mil pessoas.

O receio é que agora, além de uma escalada na intensidade do “badminton”, o Governo ucraniano reaja à presença de tropas estrangeiras no seu território, ou então – o cenário apontando como mais provável no Ocidente – que Putin não resista de expandir o território sob controlo separatista. O Presidente russo fez questão de salientar na terça-feira que, quando reconheceu as repúblicas separatistas, não as reconheceu somente como tendo autoridade nas áreas que efetivamente controlam, mas também sobre regiões sob controlo ucraniano.

Na prática, Putin “está a estabelecer uma justificação para ir muito mais além. Isto é o início de uma invasão russa da Ucrânia”, reagiu o Presidente americano, Joe Biden, em conferência de imprensa.

Entretanto, o Kremlin dedicava-se a fazer circular acusações de que os ucranianos de língua russa são perseguidos por Kiev, chegando Putin até a falar num “genocídio”, e que uma ofensiva da Ucrânia contra Donbass estaria a ser preparada, apontando o dedo a Vladimir Zelensky.

Na imprensa russa, o Presidente ucraniano é acusado de ser “instável”, um homem “capaz de qualquer coisa”– espelhando muito do que se ouve no Ocidente acerca de Putin – e “diretamente dependente dos seus curadores americanos”, nas palavras do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, ao canal estatal Rossiya-1.

Contudo, no fundo das justificações do Kremlin, dá para notar um rancor bem mais profundo que a preocupação com os ucranianos de língua russa, ou até do que o descontentamento com o rescaldo da Revolução de Maidan, que culminou numa viragem de Kiev para o Ocidente e na anexação da Crimeia. No fundo, parece estar a negação da própria Ucrânia enquanto país.

“As autoridades ucranianas começaram a construir o seu Estado na negação de tudo o que nos une”, declarou Putin no seu discurso, ressentido. “Eles procuraram distorcer a consciência, a memória histórica de milhões, gerações inteiras a viver na Ucrânia”, sentenciou, entre críticas a Lenin por ter integrado Donbass na Ucrânia, então uma república soviética.

Já Biden mostrou-se furioso. “Quem é que Putin acha que lhe deu o direito de declarar dois novos pretensos países?”, questionou o Presidente americano.

“Vou começar a impor sanções em resposta, que irão muito além do que nós e os nossos aliados implementámos em 2014”, garantiu Biden, esta terça-feira. “E se a Rússia for mais além, nós estamos preparados para ir mais além com sanções”.

Na prática, as sanções anunciadas pela Casa Branca – no dia anterior já tinham sido alvo de sanções as Repúblicas Populares de Donetsk e de Luhansk – terão como alvo a dívida soberana russa, bem como as elites ligadas ao regime.

A UE acompanhou esta manobra, impondo um pacote de sanções aprovado por unanimidade durante uma reunião entre todos os chefes da diplomacia europeia. As sanções “vão magoar a Rússia, e vão magoar muito”, prometeu Josep Borrell, responsável pela política externa da Comissão Europeia, citado pela DW. Terão como alvos mais de quatro centenas de pessoas envolvidas na decisão de reconhecer as repúblicas separatistas, ficando sujeitas a interdições de viagens e ao confisco dos seus bens no espaço europeu. Além disso, também serão visados bancos que financiem as forças armadas russas, ficando limitado o acesso do Kremlin a capital e serviços financeiros europeus.

No entanto, talvez aquilo que vá magoar mais o Kremlin seja a decisão do Governo alemão de suspender a autorização para o funcionamento do NordStream2. Este gasoduto, cuja construção foi concluida em setembro, une a Rússia à Alemanha através do mar Báltico, lado a lado com o NordStream1, que em conjunto poderiam transportar quase um quarto de todo o gás natural consumido pela UE.

Tratava-se de um projeto crucial para o Kremlin, não só pelo dinheiro que traria, mas também por permitir contornar os gasodutos da Ucrânia, negando-lhe uma parte importante da sua receita. Contudo, as sanções também terão impactos fortes na UE, que já enfrenta uma crise energética – aliás, com a suspensão do NordStream2, fica a perder diretamente tanto o gigante energético russo Gazprom, que pagou metade da obra, como a ENGIE, uma empresa francesa, e a Shell, uma empresa britânica, que pagaram a outra metade da obra.