De Sarajevo a Donetsk só a memória é curta

Não sei se voltarei a Donetsk. Não sei se haverá algo para voltar. A guerra veio e a guerra destrói tudo. Até a alma dos homens. Só não destrói a memória.

Gostava de frases nas paredes. Uma vez, em Belfast, encontrei uma que dizia: ‘Tell me God, is it death after life?’. E  noutra, em San Salvador, pude ler: ‘Salvadoreños – tanta tranquilidad me da miedo’. Durante anos, na Av. de Berna, no muro branco que pertencia a um quartel, letras brutas berravam. «De Aushwitz a Beirute só a memória é curta». A linguagem universal das paredes desapareceu. Sobrou o triste calão suburbano dos grafittis. 

Há quase dez anos, cheguei a Donetsk para ver o Portugal-Espanha das meias-finais do Europeu de 2012. Saí do comboio noturno de Kiev mecanizado e duro como era, nesse dia, se o Torga me autoriza. Queria ser alguém que se deitasse no banco mais comprido que vagasse e pudesse dormir. E pude.

Os bancos de jardim são amigos de madeira. Quando era rapaz e viajava pelo mundo de comboio e de autocarro, os bancos de jardim eram camas sibaríticas, plenas de ritmos, imagens e emoções. Nessa manhã de Donetsk adormeci ao sol e o sol de junho é violento por esses lados do planeta. Acordei em fogo pela cara, pelo pescoço. Inchado, vermelho, mal conseguindo abrir os olhos. Nem Hum-Pá-Pá, o pele-vermelha, se atreveria a ser mais vermelho. Ninguém parecia ter pressa. Ninguém parecia ter qualquer outro lugar para onde ir no qual se sentisse melhor do que ali, ao sabor do sol.

Donetsk voltou a entrar-me pelas janelas dos jornais e das televisões. Recordo-lhe as avenidas largas, o rio que se chama Calmius, se calhar por ironia. Há guerra em Donetsk. Há guerra em Donetsk como não havia na Europa desde 1945, dizem. Não, a minha memória não é curta.

«Nunca olhes o sol de frente», dizia a sabedoria do meu pai que me mostrou que há um poema que se encaixa em cada momento da vida. Fui pelas ruas de Donetsk com o sol espelhado na cara e fervendo por dentro na ansiedade de jornalista que busca coisas de escrever e de exprimir. A ânsia que me faz andar, andar sempre, na tentativa de esclarecer e de ser útil, como dizia o mestre Alfredo Farinha.

Um calor espesso sobre a cidade. Como um cobertor de papa antigo de avós. Um trovão. A chuva que começava a cair. E o poema de Caeiro, duas linhas apenas: «Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. Ambos existem; cada um é como é».

Não sei se voltarei a Donetsk. Não sei se haverá algo para voltar. A guerra veio e a guerra destrói tudo. Até a alma dos homens. Só não destrói a memória.

Não se via guerra na Europa assim desde 1945, teimam as vozes em metralhadora dos repórteres.

Em 1983, eu estava em Sarajevo. Nessa tarde éramos três. Caminhávamos devagar com o sol por cima, redondo e grosso, um cão escanzelado seguia-nos teimoso na expectativa da esmola das migalhas. As gralhas dependuravam-se como vírgulas desacertadas nos fios do telefone, havia uma atmosfera pacífica de tempos que não têm fim e uma sensação melancólica de nada haver para fazer senão caminhar lentamente com o sol por cima.

Vínhamos de Mostar, perdida no meio dos vinhedos, e ainda mais do sul, de Dubrovnik onde o Adriático é tão azul que os olhos choram sem querer. Arrastávamos os pés por um caminho de terra batida que fervia e, ao longe, já se via Sarajevo, tal e qual a conheci, com as suas cúpulas e minaretes e palácios, é daí que vem o seu nome, saraj, como o designam os turcos – o palácio. 

Falávamos de futebol, durante muitas horas falámos de futebol ao ritmo dos passos. Deve ser por isso que o futebol apaixona: a gente não se limita a vê-lo, não se contenta com as bolas que entram ou não entram na baliza de guarda-redes infelizes, a gente precisa de falar sobre ele, esgotar os argumentos como se se cansasse dentro de campo atrás de uma bola teimosa, insubmissa, irrequieta. Seja em que língua for. 

Já o disse e repito: éramos três. O terceiro de nós, encontrámo-lo numa estação dos caminhos-de-ferro mastigando abrunhos arroxeados que tirava de um pacote de papel pardo, amachucado. Colou-se-nos como uma sombra, silenciosa e muda, Ficámos amigos. 

Tinha um nome curto e afiado: Zurc. Ensinou-nos os carreiros mais recônditos da cidade, as ruas, as praças, as vielas arabizadas. E também então fui aprendendo que é bom escrever sobre as cidades. Depois quis que fôssemos com ele a um lugar, a casa de um tio, para bebermos slivovitza, a aguardente de abrunho que queima no coração.

Mas, anos e anos se passaram entretanto. De repente, reparo: quase quarenta. De muito disto já eu me esquecera só que, de vez em quando, deito a mão às prateleiras da memória em busca de qualquer coisa que me faça repicar os sinos na torre solitária da igreja da saudade. 

Veio a guerra e a morte e um silêncio que deixava as perguntas sem respostas e as mensagens sem retorno e uma dúvida insinuando-se lentamente. O entardecer é uma hora mágica, digna do fascínio secular das cidades atormentadas. É o momento tardio no qual se diluem os biorritmos do entusiasmo e os fins se anunciam num espaço infinito de melancolias. É o tempo em que vamos, devagarinho, deixando de ser o que fomos para recomeçarmos, ainda mais devagarinho, a ser o que ainda não somos. Conheci em Sarajevo um rapaz ensimesmado e corajoso que trabalhava nos correios e tinha uma alma doce como um abrunho maduro. E olhos impassíveis como um horizonte límpido.

Nesses dias de calores infinitos não existia ainda a inquietação angustiada da guerra, mas ele falava-nos com raiva das injustiças exibindo o seu orgulho muçulmano e sem quebras. Tinha um nome em monossílabo que parecia prenúncio de uma vida curta. Era ao mesmo tempo um pouco triste e solitário como devem ser todos os rapazes cujos nomes queremos deixar escritos. O tempo passou. O tempo passa sempre. Mais tarde, ainda conversámos à distância, mas cada vez mais à distância, cada um de nós mais velho, cada um de nós mais cada um de si. Escutava-lhe a amargura crescente. Algo nos separava. Talvez o medo? O medo que ele tinha e eu não, rodeado pelo meu mundo tranquilo a tantos quilómetros dos vinhedos onde ia crescendo o ódio. Vinhas de uma ira contida. Devia ter perguntado, como Garcia Márquez: «Em que lugar do cérebro se encontra a consciência?».

 Um dia qualquer, o seu telefone ficou mudo. Talvez uma campainha se esforçasse num driiiing-driiiing insistente pelos corredores de uma casa vazia onde ninguém ficara para o gesto simples e corriqueiro de levantar o auscultador. Pode muito bem ser que tenha morrido ou desaparecido nos horizontes como uma música ao longe. Ao entardecer, claro!, como manda o irrevogável destino dos homens que não têm medo de olhar o sol de frente. Sim, de Sarajevo a Donetsk só a memória é curta.