S.S Central America. Os rostos que habitam as profundezas

Fotografias misteriosas recuperadas do naufrágio do navio SS Central America, ocorrido em 1857, estão a ser publicadas pela primeira vez depois de anos de uma investigação que tem revelado os segredos daquele que é conhecido como o “navio do ouro”. 

Este é um daqueles acontecimentos que devem ser relatados como histórias de fantasia e mistério. Viajemos até dia 3 de setembro de 1857, em que 477 passageiros e 101 tripulantes, a bordo do SS Central America, sob o comando de William Lewis Herndon, deixaram o porto de Colón, no Panamá, rumo a Nova Iorque. O navio transportava, além destas centenas de passageiros, uma carga de barras de ouro e moedas, principalmente da corrida do ouro na Califórnia.

Um documento da Defesa dos EUA desclassificado em 1971 informa que o navio continha “11,2 toneladas de ouro, sem incluir o ouro trazido pelos passageiros”. Depois de fazer escala em Havana, o navio seguiu para Norte mas, apenas oito dias após o começo da viagem, foi atingido por um furacão, na costa das Carolina do Sul. As velas romperam-se, a proa meteu água e, quando a caldeira parou, a esperança desapareceu e os passageiros perceberam que seria o seu fim.

Apesar do pânico, o capitão Herndon ainda içou a bandeira Stars & Stripes de cabeça para baixo como um sinal de socorro. No dia seguinte, houve a tentativa de um resgate por parte de um outro barco, mas o tempo não ajudou. Barcos salva-vidas salvaram 153 passageiros, mas o SS Central America acabou por afundar-se às 20h do dia seguinte, levando consigo 425 vidas humanas. Além dessas, todo o ouro desapareceu… A notícia do desastre espalhou-se rapidamente e a grande perda depressa agravou a histeria financeira em torno dos bancos de Nova Iorque. 

Onde está o ouro? Em 1988, mais de cem anos volvidos sobre o naufrágio, o engenheiro Tommy Thompson localizou os despojos do SS Central America. Quando as expedições da sua equipa começaram a recuperar pepitas, lingotes e moedas, o mundo ficou deslumbrado. Com as riquezas depositadas a mais de dois mil metros de profundidade, a operação foi considerada “altamente sofisticada em termos tecnológicos”.

De acordo com a BBC, a maior parte do metal precioso foi vendido em 2000 por 50 milhões de dólares, cerca de 44 milhões de euros. Contudo, os 161 investidores que pagaram milhões a Thompson para que este encontrasse o navio nunca foram reembolsados. Por isso, dois deles decidiram avançar para tribunal e reclamar o dinheiro na justiça.

Segundo o processo judicial, “o ouro que foi localizado com ajuda de sonares e recuperado com tecnologia robótica” – que Thompson conseguiu graças ao grande financiamento que obteve. O engenheiro, que nunca quis revelar onde está o ouro restante (estimado em cerca de 500 moedas), encontra-se preso desde 2015.

Uma descoberta ainda mais brilhante Mas agora, o arqueólogo marítimo britânico Sean Kingsley focou-se noutras partes dos artefactos perdidos, atualmente recuperados: uma coleção “surpreendente” de retratos do século XIX que “por magia” sobreviveu no fundo do Atlântico. “Fotografias em placas de vidro preservaram os rostos dos mineiros, comerciantes e das suas famílias. É como se olhássemos para os ‘vivos’ do fundo do mar”, afirmou Kingsley ao Observer.

Os retratos são tão belos como desconcertantes. Segundo Kingsley, as fotografias representam os entes queridos daqueles que estavam no navio. “Existem dois navios com nomes icónicos. O Titanic é conhecido como o ‘navio dos sonhos’. Este é conhecido como o ‘navio de ouro’. Para mim, o ouro é uma distração. As placas de vidro são os verdadeiros tesouros deste naufrágio. Há dezenas de outros lá em baixo que espero que um dia também sejam salvos”, deseja o especialista.

De acordo com o The Guardian, quando o furacão atingiu o barco, os que estavam a bordo despejaram as suas malas, incapazes de salvar os seus bens valiosos, bem como as suas vidas. À medida que o navio afundava, os sacos flutuavam. “O couro decompôs-se enquanto as moedas de ouro e aglomerados de daguerreótipos e ambrótipos com dezenas de fotografias individuais foram espalhados pelo fundo do mar”, acrescentou Kingsley.

Por sua vez, Bob Evans, que investiga o naufrágio do SS Central America desde 1983 e foi o cientista-chefe e historiador da operação de campo original, admitiu sentir uma “grande emoção” por recuperar as fotografias: “É demais! Elas realmente trazem a humanidade do evento. Não sabemos quem são estas pessoas, mas estas foram as últimas coisas que esses homens tinham com eles no convés antes de o navio se afundar… Eram as coisas mais importantes para eles… O seu dinheiro e estas imagens que representavam amigos, parentes ou até eles mesmos”, elucidou, acrescentando que ao olhar para os retratos estamos a olhar para “os rostos reais das pessoas”.

“Tu és levado para lá. Estás a olhar para as pessoas que viveram isto, que são como nós, embora as roupas tenham mudado”, reforçou. O historiador destacou ainda uma fotografia de uma jovem “cuja beleza cativou os homens que a recuperaram”: “Ela é a Mona Lisa das profundezas. Esta linda jovem de 18 anos, ou qualquer que seja a idade, com os ombros nus, joias e rendas… Traz qualquer coisa que a moeda não traz! As moedas também têm mensagens, mas são mais difíceis de interpretar, mais intelectuais e talvez menos viscerais”, acredita Evans. 

Agora, as fotografias apareceram na última edição da Wreckwatch, a revista que o próprio Kingsley edita. À mesma publicação, o arqueólogo britânico contou que esta é “a maior coleção de fotografias antigas encontradas nas profundezas do mar” e que “são inéditas”. “É uma experiência única na vida ver rostos das profundezas”, frisou.

De acordo com o The Guardian, parte do atraso na publicação do material deve-se às “complexidades legais em torno da embarcação”, mais uma vez, por conta do Columbus-America Discovery Group, do investigador Tommy Thompson, que realizou um estudo científico sobre a vida marinha ali, além de ter recuperado o ouro. Thompson passou seis anos na prisão, alegando “não saber o paradeiro de parte desse carregamento”. Em 2020, recusou-se a cooperar com as autoridades que tentavam encontrar o tesouro e o juiz condenou-o por “desacato”, enquanto este afirmava ter “um síndrome raro que afeta a memória de curto prazo”.

Em 2014, contratada pelos investidores originais para prosseguir as pesquisas no navio, a Odyssey Marine Exploration conseguiu recuperar fotografias, joias e mais ouro.

No estudo publicado pela sua revista, Kingsley e Evans escrevem que os mineiros “arriscaram tudo para ir aos campos de ouro da Califórnia em busca de uma vida melhor” e que a viagem de volta a Nova Iorque “deveria ter sido a sua coroação”.

Anos depois da tragédia, um sobrevivente relembrava: “Muitos dos passageiros eram mineiros, levando consigo somas consideráveis ​de ouro (produto de anos de luta e trabalho). Mas o amor ao ouro foi esquecido na ansiedade e terror do momento e muitos homens acabaram por se livrar dos seus cintos recheados de ouro, atirando-os no convés e esperando, com isso, aliviar o seu peso e assim manter o navio à tona. Outros jogaram-no borda fora em desespero, pensando que não havia utilidade na sepultura de água para onde iriam”.