Ratzinger e Houellebecq

No pensamento filosófico de Ratzinger, o questionamento sobre na nossa cultura e o que ainda restaria, o diagnóstico sobre a desagregação total da nossa civilização são de uma exatidão definitiva. 

Por João Maurício Brás

Não é necessário sermos crentes, nem tão pouco católicos para admitir que Ratzinger é um dos últimos e mais importantes filósofos (e pensadores) das últimas décadas. O seu texto A Europa. Os seus fundamentos Hoje e Amanhã, por exemplo, devia ser de leitura obrigatória. 

São os valores que fundam a cultura humana e constituem a pessoa. As tecnicidades incompreensíveis que não para os seus utilizadores, os ativismos, a ligeireza jornalística e o que ainda chamamos pensamento, são irrelevantes em comparação com o trabalho deste homem. Acrescentaria um outro nome junto com o de Ratzinger, que é o de Michel Houellebecq. O escritor francês ainda recentemente escrevia: «Uma civilização que aceita a eutanásia não merece qualquer respeito».

Não confundamos moralismos com regulação moral e com valores éticos. Estes podem ser ficções, mas foram eles que escoraram e deram um chão às sociedades Ocidentais, e que estão na base do que melhor fizemos e pensamos. Hoje apenas temos a tecnicidade do direito e um vazio axiológico típico das sociedades mercado, onde tudo tem preço e nada tem valor.

No pensamento filosófico de Ratzinger, o questionamento sobre na nossa cultura e o que ainda restaria, o diagnóstico sobre a desagregação total da nossa civilização são de uma exatidão definitiva. Já não nos interessa, porque já nem conseguimos pensar para além da reatividade larvar típica da híper excitação das redes sociais e da compulsão da vida como uma sucessão de saldos e novos produtos.

Os seus alertas sobre o ódio que Ocidente sente em relação a si mesmo, que só se pode considerar como algo patológico e a nossa ideologia terminal são uma última oportunidade para quem ainda consegue pensar. Veja-se a mediocridade dos nossos modelos de vida ideais, dos nossos sonhos e dos nossos heróis. 

A crise que Ratzinger deteta no ‘sistema circulatório’ da nossa cultura, conduz-nos ao que caracteriza como de vários ‘transplantes’, substituições e encenações do que é essencial, degradações compensatórias que mais não fazem que liquidar a nossa identidade, que radica principalmente nas nossas forças éticas e espirituais e que se expressam na cultura e na sociedade. 

Estes tempos parecem os do fim do império Romano, que já só vivia daqueles que o estavam a dissolver, porque essa civilização, como a nossa, já estava despossuída da sua energia vital.

A existência de valores intrínsecos foi rasurada, os valores está doravante agregados ao circunstancialismo de uma visão, onde tudo é ou deixa de ser moral de acordo com essas circunstâncias. 

O colapso de uma cultura nunca é principalmente económico, político ou social, mas de uma ordem mais profunda. O ódio do Ocidente a si próprio, o esquecimento das suas principais conquistas, é o elemento fundamental do nosso tempo. 
É moda considerar tudo como fobia e patologia, mas este ódio ao que somos é dos traços mais doentios de uma cultura, de uma pessoa e sociedade. 

A invasão da Ucrânia pode ser uma oportunidade para recuperar valores fundamentais na Europa e no Ocidente, transformados que estamos num supermercado, e reavivar a base ética anti-relativista e anti-niilista que estrutura a democracia e a liberdade genuínas. Os ucranianos estão a dar-nos uma lição sobre o essencial, a saber, o que não tem valor porque vale mais que tudo. O enraizamento e dádiva são as bases imutáveis do melhor da humanidade do humano.