Negociar com ditaduras é trair a democracia

A nossa democracia atravessa(va), antes da brutal guerra lançada sobre o mundo livre pela Rússia, desafios à sua própria sobrevivência

Por João Maurício Brás

O capitalismo, o liberalismo e a democracia são das mais brilhantes invenções do espírito humano e fazem parte dos principais tesouros civilizacionais. Mas há uma lição fundamental: não são conquistas definitivas, têm de ser aprofundados, preservados e transmitidos.

 A nossa democracia atravessa(va), antes da brutal guerra lançada sobre o mundo livre pela Rússia, desafios à sua própria sobrevivência. A democracia é cada vez mais formal, a ideia de progresso deforma-se como progressismo, odiamos o que somos, a nossa história, identidade e cultura. Uma conceção do mundo como um supermercado global onde os valores e as conceções de vida boa foram remetidos para a esfera privada ou mesmo aniquilados enfraqueceu a democracia. 

O que demora séculos a construir pode ser destruído num ápice. Aos inimigos externos como as autocracias, as ditaduras e cleptocracias acrescentemos a destruição interna. A democracia não é um sistema perfeito, mas foi e é o melhor, mais justo e mais humano que engendramos. Mas uma ideia de democracia predominantemente mercantilista (hiperliberal) com o seu relativismo moral tem destruído alicerces fundamentais, enunciados em documentos fundadores como a Oração Fúnebre de Péricles. 

Ainda conseguiremos e estaremos interessados em salvar o que era a essência da democracia? A Europa existe como civilização ou é apenas um entreposto económico-administrativo? O apoio à Ucrânia é apenas um episódio festivo e mediático ou um regresso ao que temos de salvar?

As nossas democracias e o nosso capitalismo estão profundamente doentes, porque deixaram de ser autenticamente éticos. O predomínio do legalismo sem estar escudado na moral, a ideia de crescimento ilimitado e a bizarra ideia de liberdade individual absoluta irrestrita, bem como o primado do interesse particular egoísta e da sociedade mercado deixou-nos vazios, destruiu o que nos enraizava. 

Dois exemplos da má democracia liberal económica. 

Pensemos em toda a parafernália que podemos pagar facilmente e comprar de modo frívolo, porque são produzidos, até sob tutela de empresas Ocidentais, em lugares onde os direitos laborais, remunerações condignas, segurança no trabalho, respeito pelos direitos humanos e preocupações ambientais são inexistentes. As condições laborais de quem produz o iPhone na China, a poluição da mina com os metais necessários, a bom preço, importados de África são irrelevantes; importa, sim, agitar a bandeirinha arco-íris e gritar contra o machismo ocidental e fazer tik toks na festa do clima. Não sabemos que o telemóvel de mil euros custaria, com o cumprimento do mínimo de decência, três mil euros. O mundo que temos, este tipo de conforto material, deve-se a um mundo profundamente desigual que podemos comprar sem que nos afete muito, nós os grandes produtores de lixo, de consumo do desnecessário e dos excedentes imorais, deste mundo opulento e perdulário, para além de uns surtos sazonais programados de preocupações eco-friendly e mediático-inclusivas. 

Negociamos facilmente com ditadores e regimes totalitários. Somos nós que os enriquecemos e permitimos que os seus sistemas autocráticos e cleptocráticos predominem. Este é o capitalismo e o liberalismo sem ética e sem princípios morais. Os paraísos fiscais, os vistos Gold, os negócios sem rosto são validados pelos nossos democratas liquidatários da democracia.