Nesse mundo romântico do futebol escrito, onde as estrelas voam como borboletas iluminadas e os cometas colidem uns com os outros em explosões de néon, os filhos de Deus, mesmo que seja um deus menor, não se medem aos palmos, tal como os homens sobre a banalidade da Terra. Porque todos só são eternos enquanto a bola, essa mágica senhora das paixões, obedece cegamente aos que os seus pés ordenam, descansa hoje na cidade de Lecco, no cemitério de Vecuraggo, Renzo De Vecchi, aquele que os italianos adoraram como o melhor terzino que jamais passou pelo calcio. Um terzino é um defesa. O nome vem do tempo em que os estrategas de Itália acrescentaram um libero aos, na altura, habituais dois defesas. Terzino – de terceiro, claro. E pequenote de altura, fininho de físico, nada que o aconselhasse para as lutas sem quartel com avançados possantes e brutos como soldados da Idade Média.
Nascido no dia 3 de maio de 1894, em Milão, Renzo ganhou o direito a ser titular do Milan com apenas 15 anos. Dizem aqueles que colecionam lendas que a sua estreia foi tão perfeita que, logo ali, lhe puseram a alcunha de ‘Figlio di Dio’. É possível que Deus, se tiver a hombridade de existir, trate os seus filhos com igual carinho, embora o mundo nos negue tal verdade cada dia do ano. Renzo fazia pouco caso dos centímetros que lhe faltavam. Compensava-os com a categoria e a calma de um adulto, com a habilidade suprema de ser mais rápido de que todos os outros e com um poder de impulsão próprio de um Mercúrio com asas nos pés. Na estreia com a camisola vermelha e negra, precisamente no dia 14 de novembro de 1909, frente a uma equipa entretanto desaparecida chamada Ausonia Pro Gorla, de onde fica a atual Gorlaprecotto, um dos subúrbios da grande Milão, enfiou no bolso dos calções o temível ponta-de-lança adversário, um calmeirão que dava pelo nome de Herbert Kilpin, também ele jogador do Milan, a fazer uma perninha pelos contrários para equilibrar as coisas. Cada movimento de De Vecchi, antecipando-se a tudo o que o monstro que tinha como opositor procurava fazer, merecia gritos vindos das bancadas como se o público presenciasse uma tourada. Depois, no fim do jogo, Renzo foi chamado pela direção do clube e recebeu, à laia de rabos e orelhas, um par de calções novos, como uma bênção para a carreira fantástica que prometia.
Foi Bonfiglio, um dos mais fanáticos adeptos do Milan, que ao vê-lo bailar no campo como Maya Mikhaylovna Plisetskaya, a dançarina russa que desafiava a Lei da Gravidade, que soltou, abismado, do fundo do seu coração milanista: «Ma chi è questo? Il figlio di Dio?». Sim, provavelmente o mais pequenino dos filhos de Deus. Mas que honrava em campo a sua paternidade.
Aos 16 anos, já Renzo tinha sido chamado para vestir a camisola azul inconfundível da Itália. Estreou-se com 16 anos em Budapeste, frente à Hungria, embora equipando de branco, numa derrota por 1-6. Foi pela mão da mãe, que o acompanhou na viagem. Não passava de um menino. Arranjou um emprego, que o futebol não rendia fortunas, tornou-se caixa da Banca Commerciale di Milano. Mas continua abençoado por uma mão que se abre no céu, por entre as nuvens. O Génova oferece por ele a fortuna de 24 mil liras e torna-se, na realidade, o primeiro jogador profissional da história do calcio.
Era um comandante. Tinha uma confiança tão plena em si próprio, que abandonava a sua defesa para se lançar no ataque com arrancadas fulminantes muitas vezes concluídas com pontapés certeiros ao milímetro. O Filho de Deus era adorado pelas multidões, arrastou consigo o Génova para três títulos de campeão de Itália e Della Valle, o histórico avançado do Bolonha, jurou a pés juntos que nunca, durante todos os anos que o viu jogar, alguma vez foi driblado por um adversário. Era demasiado esperto e demasiado rápido para suportar uma simples finta. Para o seu lugar, o Milan foi buscar um rapaz que dava pelo simples nome de Carlo. As saudades eram tantas que ganhou uma alcunha facilitista. «Il Nipote di Dio».
Ah! Mas não há sobrinho que substitua um filho no coração de um pai. Renzo foi figura de capa de revistas e de jornais. Uma das mais famosas caras da sociedade italiana do tempo que antecipou a I Grande Guerra. Também, durante o conflito, foi um protegido do divino, fazendo o serviço militar nos serviços de comunicação, levando e trazendo cartas entre postos militares no side-car de uma moto conduzida pelo seu grande amigo Gino Magnani, o fundador da revista Motociclismo. Foi treinador, colaborador do Il Calcio Illustrato, fundador do Almanacco Illustrato del Calcio, a Bíblia dos futebolistas italianos. Só não quis ser olheiro do Milan. Recusou o emprego sem querer saber de quanto lhe pagavam: «Nunca me perdoaria se aconselhasse ao meu clube de coração um jogador sem categoria». Afinal parece que nem todos podem ser filhos de Deus.