A moral da esquerda

O que me interessa é constatar que gente de esquerda e até de extrema-esquerda não resiste ao apelo do dinheiro e do luxo. Supunha e suponho que gente de esquerda deveria contentar-se alegremente com um estilo de vida modesto, não muito diferente do que era o modestíssimo estilo de vida das populações da União Soviética.

por Fátima Bonifácio

Há uns dois ou três anos, Pablo Iglesias por pouco não perdeu a liderança do Podemos por ter comprado, em Madrid, uma moradia com piscina. O imóvel, que custou apenas 600.000 euros, só pode ser uma habitação modesta nos subúrbios da capital de Espanha. Ainda assim, os seus correligionários, ou alguns dos seus correligionários, não perdoaram ao líder esta notória atracção por um estilo de vida que imita o estilo de vida dos ricos verdadeiros. O recente caso Ana Gomes, que é co-proprietária de um imóvel em Sintra cuja descrição nos arquivos municipais não corresponde ao património em causa – omite uma piscina e uma ‘guest house’ independente – não me interessa em si mesmo. A não ser como ilustração da mais corrente das contradições morais da esquerda, moderada ou extrema: o imóvel está à venda por dois milhões de euros, ao passo que, para efeitos fiscais, o seu valor patrimonial ronda os trezentos e tal mil euros.

Confesso que, ao ler a notícia no Nascer do SOL de 19 de Março, fiquei perplexa. Ana Gomes tem-se de há muitos anos a esta parte distinguido por pregar moral a propósito de tudo e de nada nas televisões. Pensaria que se tratava de uma cidadã irrepreensível, com todos, mas todos os seus impostos impecavelmente pagos em dia. É caso para dizer que no melhor pano cai a nódoa. Este, no entanto, não é o aspecto que pretendo aqui realçar.

O que me interessa é constatar que gente de esquerda e até de extrema-esquerda não resiste ao apelo do dinheiro e do luxo. Supunha e suponho que gente de esquerda deveria contentar-se alegremente com um estilo de vida modesto, não muito diferente do que era o modestíssimo estilo de vida das populações da União Soviética. Há mais de sessenta anos tive ocasião de visitar Berlim Leste. Mesmo só vendo o que as autoridades permitiam, notei, muito jovem, o ‘cinzentismo’ daquela sociedade em que todos se vestiam pobremente. A experiência foi suficiente para eu formar uma ideia do que era o comunismo: a igualdade na pobreza generalizada, à excepção, como vim a descobrir mais tarde, dos apparatchiks que tinham acesso a lojas onde se pagava em dólares e que passavam os fins de semanas nas suas luxuosas datchas. Esta dualidade de destinos pareceu-me, até hoje, uma imperdoável imoralidade.

Na pátria dos trabalhadores, onde deveria imperar uma igualdade sem falhas, havia, afinal, uns poucos ricos e muitos pobres. Esta contradição não era, contudo e como até hoje se tem visto, circunstancial. Conheço muitos ricos de esquerda, que se queixam das famigeradas desigualdades geradas pelo capitalismo! Não é este, todavia, o cerne da questão. O cerne da questão está no fascínio que sobre a esquerda exerce a sociedade de consumo, o produto típico desse maldito modo de produção. Trata-se, de resto, de mais do que da paixão pelo consumismo – trata-se da apetência pela posse de riqueza: um bom automóvel, vestuário de qualidade, apartamentos confortáveis, bem localizados e bem decorados, segundas casas se possível com piscina e ‘guest house’. Quase ninguém resiste à visão deste El Dourado. E esta gente, que olha para a direita como uma satânica capitalista, vive e goza tranquilamente dos bens que o capitalismo lhe proporciona!

Isto, esta flagrante contradição, parece incompreensível, mas não é. O marxismo aboliu o conceito de ‘natureza humana’, o que o torna uma ferramenta inútil para perceber as sociedades, passadas e presentes, de todas as geografias. Sabemos que para o marxismo os homens são determinados pelas ‘relações sociais de produção’ em que estão inseridos. Este dogma, hoje em dia já bastante amolgado, legou no entanto uma tradição epistemológica bastante duradoira: a ignorância ou a recusa de considerar aquilo a que chamamos, apropriadamente, a natureza humana.

E, no entanto, há uma série de fenómenos sociais que não se compreendem sem o recurso a este conceito maldito. Engels, na Origem da família, da propriedade privada e do Estado, uma obra medíocre que foi durante gerações um livro de cabeceira dos marxistas, pinta-nos uma era primitiva em que não existia a propriedade privada, antes e apenas comunidades que partilhavam colectivamente os frutos do seu labor. Tais comunidades eram como deus e os anjos no céu: sem conflitos, sem invejas. Depois, sem que Engels nos explique como nem porquê, foram surgindo uns malvados que decidiram demarcar os seus espaços individuais: surgiu a propriedade privada, e, com ela, a fonte de toda a infelicidade humana. O que Engels não nos explica, nem lhe ocorre explicar-nos, é o motivo pelo qual alguns indivíduos, não satisfeitos pela comunidade celestial em que viviam, decidiram apropriar-se das terras que consideravam suas. A posse, o direito de posse, decorre da natureza humana, desde os tempos mais remotos até hoje. Ninguém, nem a esquerda mais feroz, resiste a este impulso natural. E convém observar que, hoje em dia, o consumo é o Ersatz mais difundido para a propriedade propriamente dita – é o consolo dos pobres.

Como disse, conheço ricos que são de esquerda. Quando interpelados sobre o que é uma patente contradição moral, os seus argumentos deixam subentendido que aceitariam uma ordem igualitária quando o maléfico capitalismo fosse derrotado e a igualdade geral estabelecida. Ou seja, daqui a uns quinhentos anos…