Óscares. A celebração da diversidade eclipsada por uma chapada

Apesar da surpreendente vitória de CODA como Melhor Filmes dos Óscares, o que mais marcou a cerimónia foi a agressão de Will Smith a Chris Rock.

Na noite em que Hollywood deveria celebrar o melhor que a indústria cinematográfica tem para oferecer, todas as vitórias e estatuetas entregues durante a cerimónia dos Óscares foram eclipsadas pelo estalo que Will Smith aplicou ao apresentador Chris Rock, depois de este fazer uma piada sobre o facto de Jada Pinkett Smith ter a cabeça rapada.

Antes de entregar o Prémio de Melhor Documentário, que distinguiu o filme Summer of Soul, de Questlove, Rock fazia o típico “roast” aos convidados, comparando a aparência de Pinkett Smith, que tem o cabelo rapado devido a uma doença autoimune que afeta o couro cabeludo, alopecia areata, à de Demi Moore em GI Jane, filme de 1997 que tem como protagonista uma mulher soldado. O humorista afirmou estar ansioso por ver Pinckett Smith em GI Jane 2.

Apesar de num primeiro momento Smith rir-se da piada, a expressão da atriz de 50 anos pareceu demonstrar desconforto. A imagem corta para Rock a falar em palco até que se vê o protagonista de King Richard, filme sobre Richard Williams, pai de Venus e Serena Williams, a dirigir-se até ao humorista e a dar-lhe um estalo. “Era só uma piada sobre a GI Jane”, disse o apresentador atónito.

“Tira o nome da minha mulher da tua boca”, gritou Smith, enquanto ao seu redor todos observavam em silêncio.

Minutos depois da insólita situação, com os espetadores e internautas ainda a questionar se o que tinha acontecido tinha sido real ou uma atuação, Smith subiu novamente a palco, mas, desta vez, para receber o Óscar de Melhor Ator Principal. Em lágrimas, falou sobre como durante o filme teve de proteger a sua “família” fictícia. Pediu ainda desculpas “à Academia e a todos os nomeados”, acrescentando que “o amor obriga as pessoas a fazer coisas loucas”, com a emissão a filmar imediatamente Pinkett Smith a sorrir.

Esta atitude gerou opiniões contrastantes na internet. “Que sensação acordar e descobrir que o quinto homem negro em quase 100 anos a ganhar um Óscar de Melhor Ator, e o primeiro em 16 anos, recorre à violência em vez de utilizar o poder das palavras para lidar com o Chris Rock. E depois reivindica que foram Deus e o amor que o fizeram agir dessa forma”, disse no Twitter a escritora Bernardine Evaristo, enquanto a comediante Kathy Griffin escreveu que agora todos os humoristas vão ter de se “preocupar sobre quem será o próximo Will Smith em clubes de comédia ou em teatros”.

Apesar de condenar a forma como Smith partiu para a violência, houve também quem tivesse condenado a piada de Rock. “Esta é a segunda vez que o Chris Rock faz piadas com a Jada numa cerimónia dos Óscares e, nesta noite, gozou com o facto de sofrer alopecia. Gozar com as doenças autoimunes de alguém é errado e fazê-lo de propósito é cruel. Ambos estiveram mal”, tweetou a atriz Sophia Bush.

Em Portugal, o humorista Herman José escreveu no Twitter que tem “pena que o Chris Rock não tenha o punho do The Rock – Dwayne Johson”. “Teria sido muito moralizador para a história do humor. Esperemos que a vergonhosa exceção não passe a regra”, disse.

quando a cerimónia descamba Enquanto a opinião pública discorre sobre o sucedido, ainda não se sabe ao certo quais serão as consequências reais que o Fresh Prince de Bel Air irá sofrer. Segundo a Variety, Chris Rock recusou preencher uma queixa de agressão à polícia de Los Angeles, enquanto o New York Post, que cita fontes da indústria do cinema, afirma que o ator pode vir a ser obrigado a devolver o seu Óscar. Smith já tinha sido nomeado para dois outros filmes como Melhor Ator Principal, em Ali (2001) e The Pursuit of Happyness (2006), e, este ano, também estava nomeado na categoria de Melhor Filme pelo seu trabalho como produtor de King Richard.

Não foi a primeira vez que a cerimónia dos Óscares descambou e assistiu a momentos surreais. Em 1973, quando venceu o Óscar de Melhor Ator pelo seu papel como Don Corleone no filme O Padrinho, Marlon Brando recusou comparecer na cerimónia. No seu lugar, subiu ao palco a atriz nativa-americana, Sacheen Littlefeather, que, durante cinco minutos, discursou sobre o cruel tratamento do povo indígena nos Estados Unidos. O ator John Wayne, mais conhecido por ser um dos mais icónicos protagonistas de westerns, teve que ser travado por seis seguranças porque pretendia agredir a atriz. No final da cerimónia, quando Clint Eastwood subiu ao palco para apresentar o prémio de melhor filme, disse que dedicava o prémio “a todos os cowboys que foram baleados ao longo dos anos nos westerns de John Ford” (curiosamente, esse prémio acabou por ser entregue ao Padrinho).

“A Academia não tolera qualquer forma de violência”, podia ler-se na conta de Twitter da instituição no final do espetáculo.

Vitória surpresa de CODA Apesar deste incidente ter eclipsado qualquer diálogo sobre cinema e os prémios entregues aos filmes ou às pessoas envolvidas nestes, uma narrativa impossível de ignorar foi a surpreendente vitória do filme CODA, na categoria de melhor filme do ano.

Apesar da forte concorrência de filmes como O Poder do Cão, uma produção da Netflix apontada como o favorito a vencer, ou o mega blockbuster de Denis Villeneuve, Duna, que venceu seis Óscares, a sua maioria em categorias técnicas, o filme sobre uma família de pessoas surdas acabou por triunfar, oferecendo à Apple o estatuto de primeiro serviço de streaming a ganhar esta distinção.

A noite dos Óscares foi marcada pela diversidade, com Will Smith a tornar-se apenas o quinto ator negro a vencer o Óscar de Melhor Ator Principal, depois de Denzel Washington, Sidney Poitier, Jamie Foxx e Forest Whitaker.

Mas Smith não foi o único a entrar nos livros de história: Troy Kotsur tornou-se no primeiro ator surdo do sexo masculino a vencer um Óscar pela sua performance em CODA (ver texto p. 24), enquanto a atriz de West Side Story, Ariana DeBose, foi a primeira atriz negra e queer a vencer este galardão também. Ambos foram distinguidos na categoria de Melhor Intérprete Secundário.

A realizadora Jane Campion, que já vinha a ser apontada como uma das principais favoritas ao longo dos meses, venceu o Prémio de Melhor Realizadora, ppr O Poder do Cão, tornando-se apenas a terceira realizadora a vencer esta distinção, depois de Kathryn Bigelow e Chloé Zhao. 

Já o português Luís Sequeira, na sua segunda nomeação na categoria de Melhor Guarda Roupa, desta vez pelo seu trabalho no filme Nightmare Alley de Guillermo del Toro, viu o prémio fugir para o filme Cruella.