António Bagão Félix, Economista
1.A guerra voltou ao Velho Continente. Uma invasão de um país soberano, que, depois do fim da Guerra Fria, se julgaria impossível. Um invasor comandado por uma mente perversa, ávida de um regresso a tempos passados de nostalgia imperial e acolitada por uma corte fanático de demiurgos de uma fantasiosa realidade.
Uma guerra nunca tem subjacente a ética do bem. «Toda a guerra, de si, já contraria a ética», como afirmou João Paulo II. Mesmo o conceito tomista de ‘guerra justa’, dependente da finalidade de quem a promove e do modo como é conduzida, dificilmente se poderia justificar no actual século. No caso do conflito armado na Ucrânia nem sequer se pode invocar a ‘justeza’ de, através dele, se poderem evitar males ainda maiores.
Não há bem que do mal provenha, escreveu São Paulo. Como não há fins, mesmo que considerados bons, que justifiquem meios perversos. Não há ética da guerra, mas tem de haver ética na guerra. Sobretudo, a ética subjacente ao jus in bello, ou seja, ao direito internacional humanitário e aos códigos de conduta na guerra, ao respeito pela condição humana e à proporcionalidade atinente aos objectivos dos contendores, que deve excluir as agressões fora dos alvos militares e das consequências sobre a população indefesa.
2. Há um estranho (e injusto) paradoxo nesta invasão. Apesar de vivermos tempos de completa globalização, a intensidade moral de uma guerra continua a variar em função da proximidade geográfica e do sentimento de aproximação social, cultural e psicológica do seu impacto. Outros conflitos em África, no Médio Oriente, na Chechénia ou noutra parte do planeta, acontecem longe de nós e distantes da nossa consciência. De repente, como que acordamos para o que agora está mais próximo. A barbárie, a violência indiscriminada, a morte de inocentes, a ameaça de uma guerra nuclear, estão agora perto dos nossos olhos.
Esta ‘vizinhança’ tem-se manifestado, pelo acentuado e corajoso conjunto de sanções contra a Rússia, e, noutro plano, pelas cadeias de solidariedade dos países que acolhem famílias e pelos apoios que, por todo o lado, brotam. Mas, ao mesmo tempo, a repetição exaustiva da imagem da guerra por dias a fio tende a banalizar o mal, a anestesiar a consciência e a fazer germinar a indiferença. Esta é a primeira guerra que se desenrola no meio da sociedade global de informação. As redes sociais e outras formas de comunicação digital têm tido um papel que os poderes formais não controlam, por mais que tentem amordaçá-las ou condicioná-las. Mas há também a outra face, a da deslizante, maniqueísta e simplificadora diluição e erosão da fronteira entre a verdade e a mentira, a factualidade e a fantasia, a informação e a propaganda, a emoção e a razão.
A Europa desperta, agora, para o que julgava definitivamente adquirido: a paz e a segurança. Vivia-se no conforto de uma União alicerçada na lógica do cheque fácil e da felicidade bruta a preços de mercado. Uma União do salve-se (e safe-se) quem puder (atentemos na continuação de vendas de armamento à Rússia pela Alemanha, França e outros estados-membros depois do embargo pós-ocupação da Crimeia). Uma União vista como mais de direitos do que de deveres. Uma União que vem transformando uma sociedade ancorada em valores numa ‘pedra-pomes’ palavrosa, ao sabor do momento e de ideias dissolventes sobre o valor integral e inviolável da vida.
3. Trago aqui à colação um triste momento protagonizado pelo Presidente francês, semanas antes da invasão da Ucrânia. No discurso proferido por ocasião da presidência francesa da UE, Macron disse que «vinte anos após a proclamação da nossa Carta dos Direitos Fundamentais, […] gostaria que pudéssemos actualizar esta Carta, em particular para ser mais explícita quanto […] ao reconhecimento do direito ao aborto».
Mais do que a sua despenalização contextualizada e compassiva, Macron quer o pleno direito a negar a vida futura de quem já vive no ventre materno. Será que a morte tem vários pesos e várias medidas em função da métrica relativista? Este é um ponto que nem os abortistas mais empedernidos ousaram dizer publicamente, pois que sempre afirmaram que também eram contra o aborto! Mas, o tacticista Macron quer mais: o aborto – imagine- se! – como direito humano! Onde pára esta deriva que viola os alicerces da condição humana?
E o que se seguiu depois desta ignominiosa declaração? Muito pouco, quase nada. Por inacção, indiferença, cobardia, acomodação. Silenciamentos significam mais do que desinteresse. Onde estavam as vozes para defender os que ainda não têm voz para o fazer? E que omissão, ou mesmo censura, faz a esmagadora maioria dos media europeus entregues ao minimalismo ético?
4. Lembro-me do que Gandhi sintetizou – com notável clarividência premonitória – no que chamou os sete ‘pecados sociais’: política sem princípios (a que acrescento também sem memória e história), economia sem moral, riqueza sem trabalho, educação sem carácter, ciência sem humanidade, prazer sem consciência e religião sem interdito.
Nos 75 anos que nos separam de Gandhi, muito se progrediu na economia, na tecnologia, nos bens materiais, mas não nos bens éticos e humanistas, cuja infracção tem sido objecto de sucessivos indultos e amnistias morais. Putin, do seu pedestal de uma autocracia medieval, gélida, inumana e unipessoal, é um destes mais atrozes ‘pecadores sociais’. Infelizmente, longe de ser o único…