Será que Putin já percebeu?

Putin já deverá ter compreendido que a ideia que tem da Rússia e de si próprio estava distorcida da realidade

Quando a Rússia começou esta nova aventura na Ucrânia, a expectativa de Putin era ver o povo ucraniano nas ruas, provavelmente em júbilo, perante a glória magnífica da chegada dos seus libertadores. A repulsa ucraniana perante um sonho da servidão voluntária terá irritado Putin, que não perceberá a razão da resistência. 

Lendo A mais breve história da Rússia, do José Milhazes, deparei-me com um poema de Fiódor Tiútchev que resume bem o nacionalismo mitológico que envolve a Rússia:

Não se pode com a mente a Rússia alcançar,

Nem dela com régua uma ideia fazer:

Porque não tem no mundo par – 

Na Rússia apenas se pode crer.

Toda a nação tem de si própria uma ideia de singularidade, ou de excecionalidade, sem a qual não teria razão de existir. As grandes potências exacerbam ao limite a ideia de si próprias. 

A Rússia, quando se tornou uma potência europeia (a Rússia foi durante muito tempo, sobretudo, uma potência asiática) no século XIX, fê-lo tentando ser a sede do pan-eslavismo e da pan-ortodoxia. Esta posição, seja no Império Russo, seja, posteriormente, na URSS, foi sempre anacrónica: desde Napoleão que as ideias do nacionalismo tinham sido levadas até às estepes; todo o século XIX europeu foi desenvolvido em torno da afirmação das nações.

A Rússia quer impor-se aos outros, mas os outros não querem que a Rússia se imponha. Com o fim da URSS, a maior parte dos países europeus do império russo (ex-URSS) e do império próximo (ex-pacto de Varsóvia), entraram em erupção interna, mas com uma linha comum a quase todos: fugir da força centrípeta russa. 

Quem visita Varsóvia percebe que, para os polacos, a ocupação começou em 1939 e terminou em 1989: a URSS não foi força de libertação, foi força de ocupação. Por isso, vemos o nervosismo nas capitais dos Estados da Europa de Leste: para nós, a Rússia é uma realidade distante. Para eles, a Rússia é o vizinho incómodo que nunca deixa de querer ser ‘suserano’.

Associado à ideia de escapar à ‘pata do urso russo’, a possibilidade de viverem em democracia e em liberdade era demasiado forte para voltar atrás, como tal, naturalmente, os novos Estados, ou os Estados recentemente independentes, procuraram associar-se ao bloco ocidental, seja por segurança, seja por prosperidade e bem-estar.

Os cidadãos dos novos estados livres do pós-1991 tiveram duas atitudes: tornaram-se nacionalistas convictos, e ficaram, ou entenderam que os seus países eram ‘terras sem esperança’, e partiram para a emigração, constituindo comunidades particularmente bem integradas, a quem Portugal muito deve.

É este desejo de liberdade que Putin parece não perceber, ou, no limite, não considerar. Os ucranianos, os lituanos ou os moldavos não querem ser russos, não querem estar dependentes da Rússia; querem ser senhores do seu destino, e não há ideia tão forte quanto a ideia da liberdade, nem força maior do que a de um Homem que decidiu ser livre.

Putin, de quem o ex-secretário da defesa norte-americano James Mattis dizia que «aprendia devagar», já deverá ter compreendido que a ideia que tem da Rússia e de si próprio estava distorcida da realidade. Como o presidente alemão disse (talvez buscando redenção dos seus próprios erros), não haverá relações normais com a Rússia enquanto o presidente for Vladimir Putin.

O Presidente russo procurara, com uma vitoria no Leste, uma saída com o mínimo de dignidade desta guerra. Para ele, todavia, não haverá saída: será o sangue dos ucranianos a escrever as páginas do seu obituário político.