Joseph-Ignace Guillotin. Até para cortar pescoços é preciso higiene

Não, Guillotin não morreu guilhotinado (foi outro) e não, não foi ele que inventou a guilhotina. Mas foi, sem dúvida, o homem que a pôs a funcionar como máquina oficial para decepar cabeças em França. Curiosamente, o primeiro a ficar com o pescoço cortado por esse método, perdeu a cabeça no dia 25 de Abril.

Se vos disserem que Joseph-Ignace Guillotin morreu guilhotinado na própria máquina que inventou, não acreditem. É um boato, por acaso muito bem caçado, mas que envolve outro Guillotin, colega médico, de primeiro nome igualmente Joseph, mas natural de Lyon. A História também é feita de erros repetidos até à exaustão, não tenham dúvidas disso. Neste caso concreto seria de uma ironia esmagadora, mas o Guillotin de que aqui falo morreu na cama e não no cadafalso. Por outro lado, se vos disserem que Joseph-Ignace Guillotin inventou a guilhotina, franzam o sobrolho e desconfiem. É que também não é verdade. Quem, de facto desenhou e construiu o aparelho foi uma dupla bastante improvável formada pelo cirurgião e fisiologista francês Antoine Louis e pelo engenheiro alemão Johann Tobias Schmidt. Aí sim, com todo o propósito, a primeira guilhotina chamou-se, de facto, louisette, mas isto foi antes de Joseph-Ignace se ter metido ao barulho com a sua aversão por execuções barulhentas e espalhafatosas. Além do mais era um fanático pela higiene e ficou ainda mais fanático depois da sua experiência profissional na Universidade de Medicina de Paris onde concluiu o curso e para onde foi, mais tarde, nomeado professor.

Tendo nascido no dia 23 de Maio de 1738 em Saintes, segundo filho de Joseph-Alexandre Guillotin e de Catherina Agatha Martin, teve uma educação religiosa entre os monges jesuítas de Bordéus, tendo em seguida prosseguido os estudos no Colégio da Aquitânia e na Universidade de Bordéus. Depois sim, Paris! E com Paris uma afirmação de identidade política e social que o fez tornar-se figura pública respeitável e um defensor valente da abolição da pena de morte, isto numa altura em que os franceses tinham o péssimo hábito de cortar cabeças por tudo e mais um par de botas. Rolavam crânios pelas esquinas das cidades, tanto de malfeitores de pacotilha como de gente finíssima, testas coroadas incluídas.

Joseph não terá sido, apesar de tudo, um exemplo de integridade intelectual, algo que também não era fácil no período fervilhante pré-revolucionário da Paris de 1755, ano em que resolveu propor que os criminosos banais mantidos em cativeiro fossem entregues aos hospitais universitários para servirem de cobaias em experiências médicas. Ora, para quem se revelava publicamente contra a pena de morte, não era bem uma proposta decente. De qualquer forma justificou-se com um argumento irrefutável: era melhor serem cobaias do que estarem à espera da mais do que certa decapitação. De alguma forma foi assim que fez a sua entrada na política e, três anos mais tarde, viu-se em sarilhos ao publicar um panfleto no qual criticava abertamente a composição dos États Généraux. Explique-se ao correr da pena: durante o chamado Ancient_Régime, o regime no poder antes da revolução que durou de 1789 a 1799, os súbditos franceses estavam divididos em três assembleias legislativas e consultivas conforme a sua posição social – clérigo, nobreza e comuns – com os seus membros escolhidos e demitidos sob livre-arbítrio do rei. Joseph-Ignace resolveu mexer com o estado de coisas com a sua Petição aos Habitantes de Paris. Se foi mal visto pelo poder, com o Parlamento a mandar retirar das ruas todos os panfletos publicados e a dar-lhe ordens expressas para guardar para si próprio as opiniões sobre a matéria em causa, ganhou uma popularidade expressiva entre a camada mais rasteira do tecido social da capital francesa. De tal ordem que, no dia 2 de Maio de 1789, se tornou deputado, lançando de imediato mãos à obra da reforma do sistema de saúde nacional. Nessa altura, estava longe de pensar que cem anos mais tarde, os seus descendentes, embaraçados, iriam fazer um pedido oficial ao governo francês para retirar o nome de Guillotin à guilhotina e, tendo recebido um rotundo não como resposta, resolveram alterar os seus apelidos para não serem conotados com a maldita maquinaria. Tinha mais em que pensar.

 

Decapitações e suas chatices

Joseph-Ignace Guillotin aproveitou a sua influência política e o seu poder como deputado para apoiar e promover os estudos do seu colega, dr. Edward Jenners, no campo da vacinação, tendo ocupado, em 1805, a cadeira de presidente do Comité Central de Vacinação de Paris, sendo igualmente precursor da atual Academia Nacional de Medicina Francesa. Como se vê, era fulano de ideias e de actos, não se ficando pelas palavras que, aliás, dominava com bastante mestria.

Mas continuemos nas suas primeiras funções como deputado e no esforço posto na causa da melhoria das condições sanitárias dos hospitais. A sua tal mania das limpezas. O fanático pela higiene declarou guerra à falta dela dos hospitais de Paris e criou uma comissão especial, chefiada por ele próprio, com poderes para inspecionar e castigar aqueles que permitiam o estado calamitoso a que as coisas tinham chegado. Como não era capaz de se dedicar a uma única causa, tratou de se colocar à cabeça daqueles que exigiam reformas legais que incluíssem o fim da pena de morte. Não foi longe. O tal vício de cortar cabeças estava demasiado arreigado na sociedade francesa de então e as suas propostas foram recusadas em toda a linha.

Vivia-se num tempo em que a pena de morte dava direito à decapitação por espada, um método não muito funcional já que eram incontáveis os pescoços que resistiam à primeira espadeirada, obrigando os carrascos à tarefa de golpear as vítimas por duas ou três vezes até verem os seus esforços premiados com o rolar da cabeça pelo chão. Mas a espada não era método único. Gente das classes mais baixas eram simplesmente enforcada, ou mais complexamente desmembrada – amarrada a cavalos que partiam em direções opostas –, fervida em panelões de água ou queimada em fogueiras. Joseph-Ignace, apesar daquela falha na convocação de condenados para servirem de cobaias, era um tipo sensível e o sofrimento imposto às vítimas da pena de morte bulia-lhe com os nervos e provocava-lhe borborigmos no estômago e na vesícula. Talvez tenha sido motivo para a infeção gastrointestinal que o atirou para o leito de morte aos 75 anos. Mas até morrer sentiu que havia muito a fazer em prol dos sofredores e dos próprios carrascos. Charles-Henri Sanson, por exemplo, que ficou para a História como o maior decapitador da Revolução Francesa, dirigiu uma missiva ao Parlamento reclamando pelos direitos dos carrascos. Segundo ele, cortar várias cabeças no mesmo dia era um trabalho desgastante, árduo e cansativo, tanto física como psicologicamente, no qual a probabilidade de cometer erros era grande, deixando várias vezes os condenados vivos durante o serviço, exigindo a insistência nos golpes. Além disso, queixava-se do material – tanto os sabres como os machados deterioravam-se bastante com o uso, perdendo o fio e a eficácia. E atenção, quando falamos de Charles-Henri Sanson não falamos de um patego qualquer. Só no seu currículo contou com 2,918 decapitações, algumas delas de personagens importantes da história da revolução, como Luís XVI, em 21 de Janeiro de 1793; Charlotte Corday, em 17 de Julho de 1793; Maria Antonieta, em 16 de Outubro de 1793; Madame du Barry em 8 de Dezembro de 1793; Danton em 5 de Abril de 1794; Camille Desmoulins, em 5 de Abril de 1794; ou Robespierre, em 28 de Julho de 1794. Enfim, um mestre! E dinástico. O seu filho, Henri Sanson, começou por ser seu ajudante até assumir o cargo. O seu neto, Henry-Clément Sanson, foi o último da família a abraçar a profissão, tendo pedido escusa do trabalho ao rei Luís Filipe, justificando-se com graves problemas psicológicos derivados da dureza do seu ofício, problemas esses que o mergulharam em depressões e no alcoolismo. Não, não era assim tão fácil ser decapitador em França como possam pensar. E, por isso, não admira de Charles-Henri Sanson tenha sido, desde o primeiro dia, um apoiante irredutível da ideia de reforma levada a cabo por Joseph-Ignace Guillotin que tinha como objetivo avançar para uma decapitação mais limpa, mais eficaz e menos dolorosa para todas as partes. Lá está: uma questão de higiene.

 

A decisão de Joseph!

A guilhotina pode ser descrita como uma máquina de decepar cabeças eficiente, prática e higiénica. Uma lâmina oblíqua despenca lá do alto de uma estrutura de madeira e separa a cabeça do tronco do indivíduo que está cá em baixo, deitado de barriga para o chão num estrado, com dois talos sobre as orelhas que o impedem de se mexer. Nunca ouvi nenhuma a funcionar (apenas uma de brincadeira, para cortar pontas de charuto, mas que também rapava a cabeça de um dedo com toda a facilidade), mas imagino que devia fazer um som metálico e incisivo – dziiiimm? – até completar o seu serviço, provocando o tombar do crânio do condenado para dentro de um cesto de onde era depois retirado por um funcionário que o mostrava à multidão sedenta de justiça, fosse lá que justiça fosse.

Quando Antoine Louis e Tobias Schmidtt desenharam o primeiro projeto desta traquitana apostaram numa lâmina curva, quase à medida do pescoço. Estavam a ser um pouco picuinhas na opinião de Luís XVI, que sugeriu que a lâmina fosse posicionada de forma oblíqua. Algo que lhe deve ter dado algum gozo quando, no dia 21 de Janeiro de 1793, ouviu o tal dziiiimm direitinho ao seu real pescoço. Aliás, já tinha tido algum cuidado com o seu futuro ao declarar a proibição por morte através da Catharine, ou seja, uma roda de madeira grossa que esmagava os ossos do corpos dos condenados. Revelador de que Luís XVI tinha uma vaga ideia de que não iria acabar os seus dias muito confortavelmente.

À medida que a revolução ia alterando os hábitos, sobretudo os maus hábitos, da sociedade francesa, ficou mais ou menos colegialmente estabelecido que as mortes judiciais deveriam ser o mais simples e indolores que fosse possível. Dentro desse princípio, Joseph-Ignace Guillotin tomou a decisão que iria marcar para sempre a sua vida e a vida dos seus filhos, netos e bisnetos e restante tralha. No dia 10 de Outubro de 1789 apresentou à Assembleia Nacional a seguinte proposta: «Toda a punição capital, independentemente da classe social do indivíduo, deve ser feita por decapitação através de maquinismo simples». Era seguida destas cinco alíneas. 1) Todos os castigos pelo mesmo crime devem ser punidos sem atender à classe social do criminoso. 2) As famílias dos condenados não devem sofrer qualquer tipo de descriminação. 3) Será ilegal seja para quem for acusar a família dos condenados pelos seus crimes. 4) As propriedades dos condenados não serão confiscadas. 5) Os corpos dos condenados serão devolvidos às suas famílias se estas os requererem.

Depois, de viva voz, ou não, terá dito para os seus pares; «Com a minha máquina cortar-se-ão cabeças num piscar de olhos e ninguém dará por isso». Ora aqui as teses dividem-se. Há quem garanta que Joseph-Ignace jamais disse tal barbaridade; há outros que garantem que a frase é sua e que, nesse momento, assumiu a paternidade da guilhotina. De tal forma que o nome se colou à máquina até hoje, apesar de todos os esforços em contrário dos seus descendentes. Embora envoltas em controvérsia, as regras estabelecidas por monsieur Guillotin foram absorvidas no espaço de pouco tempo. Se não era uma revolução era, pelo menos, uma evolução. Todas se tornaram leis a partir do dia 20 de Março de 1792. Antoine Louis ficou oficialmente responsável pelo funcionamento da máquina cortadora de cabeças e as primeiras execuções tiveram lugar no dia 25 de Abril, quem diria? Durante o que ficou conhecido por Reino do Terror, entre Junho de 1793 e Julho de 1794, cerca de 17 mil pessoas foram guilhotinadas. A primeira terá sido uma alma rebelde de nome Louis Collenot d’Angremont. A Alemanha nazi, por exemplo, utilizou o aparelho para executar mais de 16 mil prisioneiros de campos de concentração. O último criminoso francês a ficar sem cabeça através desse método tão higiénico foi um assassino chamado Hamida Djandoubi, no dia 10 de Setembro de 1977. Sim, sim: 1977. Não se admirem. A pena de morte em França só foi abolida em 1981. E ainda dizem que são gente fina.