Fome. Há cada vez mais famílias a sofrer

Mais de 8 mil pessoas estão em situação de sem-abrigo em Portugal, de acordo com dados avançados pelo ENIPSSA em setembro. Tanto os ‘sem teto’ como os ‘sem casa’ e até aqueles que apenas vão à rua à procura de apoio, procuram cada vez mais a ajuda do CASA para conseguirem comer.

Há mais de 8 mil pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal. Mais exatamente 8.209. Este número foi revelado, no final do mês de setembro, pelo portal da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), que tem dados atualizados de 275 concelhos até ao dia 31 de dezembro de 2020.

Segundo a ENIPSSA, o conceito de «pessoa em situação de sem-abrigo» é dividido em dois: pessoa sem teto e pessoa sem casa. O primeiro diz respeito às pessoas que vivem na rua ou noutros espaços públicos, em abrigos de emergência ou em locais precários; e o segundo àquelas que vivem em centros de alojamento temporário, em alojamentos específicos para pessoas sem casa ou em quartos pagos pelos serviços sociais ou por outras entidades. Do total de pessoas em situação de sem-abrigo, 3.420 são «sem teto» e 4.789 «sem casa».

Quem conhece esta realidade é o Centro de Apoio ao Sem Abrigo (CASA), uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) que iniciou a sua atividade em 2002. Através das rondas que as equipas realizam, todos os dias, por quatro rotas – Oriente, Alcântara, Santa Apolónia, Saldanha (onde vão mais pessoas para além de sem-abrigo), Mouzinho da Silveira, descendo para a Baixa e Arroios –, os voluntários e restantes membros concluem que a fome tem vindo a aumentar na capital.

«As famílias vêm à rua à procura de comida. Todos aqueles que viviam da hotelaria e do turismo, principalmente, têm estado mal. Pedimos sempre dados: procuramos ser o mais abertos possível. Se não houver cruzamento de dados das associações, é muito fácil as pessoas aproveitarem-se», diz o diretor-geral Nuno Jardim. «No entanto, temos tendência de um caso extrapolar para o geral e não nos podemos esquecer de que pedir comida não é algo muito agradável, ainda temos vergonha. Portanto, acredito que quem o faz está, efetivamente, a passar por dificuldades».
De acordo com a ENIPSSA, a Área Metropolitana de Lisboa (AML) é a zona que concentra o maior número de pessoas em situação de sem-abrigo no país: 3.665 sem casa e 1.121 sem teto. A grande maioria (4.786) está localizada no concelho de Lisboa. Contudo, esta situação não ocorre apenas na capital: quando considerado o número de pessoas em situação de sem-abrigo (PSSA) por mil habitantes, o concelho de Alvito, em Beja, lidera a lista, com 11,35 PSSA por mil habitantes. Segue-se Beja, com 9,72, e Lisboa, com 7,42.

«Os pedidos de ajuda subiram e não baixaram muito. Registámos um aumento de 75% nos sem-abrigo e de famílias à volta de 45%. Os de sem-abrigo baixaram 6% e nas famílias também ficou estável desde 2020. Ainda não houve possibilidade de recuperarem. Nós nunca paramos e, infelizmente, há associações que tiveram de parar por causa da pandemia», reconhece, adiantando que a classe média e a média-alta são aquelas que sofreram um maior impacto negativo.

«A classe média-alta e alta sofreu um grande impacto. Muitos entraram em sistemas de layoff e há os profissionais liberais que não conseguiram dar a volta. Para além destes, os idosos passam por muito e há cada vez mais com demência a vaguear pelas ruas, não tendo um lar. Em Lisboa temos as tais quatro rotas e, em Cascais, no centro, temos um refeitório para os sem-abrigo, as famílias», divulga, explicando que «noutros tempos» havia pessoas que os impediam de realizar as atividades habituais, «mas hoje em dia é tudo muito mais colaborativo. As coisas estão diferentes. Trabalhamos através da ENIPSSA e temos a solução ou alguém terá a solução. Tudo depende das vagas e instituições de determinada região. E depois é aprovado o projeto que apresentam e, com a Segurança Social, desenvolvemo-lo e, dentro da rede, são identificadas as pessoas para cada habitação».

A perspetiva de Nuno Jardim vai ao encontro daquela que a ENIPSSA veiculou há sete meses. «A média de idades das pessoas que ajudamos, em situação de sem-abrigo, é 47 anos. O intervalo é entre os 45 e os 54 e são mais homens do que mulheres», diz, sendo que a primeira mencionou que «a maioria das pessoas em situação de sem-abrigo são cidadãos portugueses, entre os 45 e os 64 anos, do sexo masculino, solteiros e com o ensino básico de escolaridade». No entanto, o relatório aponta ainda que existem 347 casais sem casa e 387 casais sem teto. Em comunicado, o Ministério tutelado por Ana Mendes Godinho sublinhou, à época, que «o Governo tem apostado em disponibilizar soluções de habitação para as pessoas em situação de sem-abrigo, numa abordagem que coloca a habitação em primeiro lugar para, a partir daí, trabalhar a respetiva inserção social e autonomia».

A «dependência de álcool ou de substâncias psicoativas», o «desemprego ou precariedade no trabalho» e a «insuficiência financeira associada a outros motivos» são as principais razões que levam à situação de sem-abrigo. O relatório aponta ainda que, em 2020, 485 pessoas conseguiram sair da situação de sem-abrigo e obtiveram uma habitação permanente. Segundo o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, há um aumento do número de pessoas em situação de sem-abrigo face a 2019 que «resulta fundamentalmente de uma melhoria no processo de diagnóstico em todo o país», algo que «permite no curto e médio prazo a adoção de estratégias para um acompanhamento mais personalizado e próximo de cada pessoa e, em simultâneo o desenho e adoção de estratégias de prevenção».

«Os Governos têm vindo a ouvir-nos cada vez mais. A estratégia nacional é implementada através deles e, ao longo do tempo, vamos sendo auscultados. Não têm feito as coisas de forma autocrática. Sobre se é necessário fazer mais, não há grande volta a dar: cada vez vai havendo mais respostas, mas nunca chegam. Há pessoas com as quais vamos mantendo o contacto. Acompanhamos e verificamos se conseguiram, de facto, fazer uma total reinserção. A comunicação e a partilha de informação são necessárias», afirma Nuno Jardim, avançando que, para quem não conhece o CASA, a explicação é simples.

«Temos como principal missão apoiar todos aqueles que estejam em situação de carência socioeconómica, sejam eles sem-abrigo ou indivíduos e famílias necessitadas. Independentemente das opiniões, do género, do credo religioso, da orientação sexual, etc. Tudo isto é irrelevante, o que importa é que precisam de ajuda», declara, adiantando que «a saúde mental é um dos problemas mais graves que existem em Portugal».

«Há casos de esquizofrenia, bipolaridade, outros cuja especificidade não sei porque não sou médico. Mas, basicamente, na rede contactamos a entidade para a qual podemos encaminhar as pessoas. É muito complicado porque não há respostas para tal», avança, acrescentando que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) «tem de estar recetivo. E tem feito isso mesmo».

«A questão é que a pessoa não pode ser tirada da rua de forma compulsiva. Tem de haver uma situação concreta, não há mecanismos para tirá-la se não quiser. Chamamos o INEM, a PSP e pouco mais. Se a pessoa não quiser, ninguém consegue ajudá-la», remata o dirigente que está no CASA desde 2007 e já desempenhou os cargos de voluntário, secretário da Assembleia Geral, vice-presidente, presidente e, há cinco anos, depois de um interregno de um ano, tornou-se diretor. 

No ano passado, o CASA distribuiu 223 mil e 620 refeições em Lisboa, 219 mil e 577 no Porto, 86 mil e 220 em Cascais, 25 mil e 360 em Setúbal, 20 mil e 128 na Madeira, 12 mil e 990 em Albufeira, 4392 em Paredes e 3933 em Coimbra, por meio das delegações presentes nestas cidades. Quanto aos cabazes, foram Paredes – 4392 – e o Porto – 3168 – que mais os entregaram aos agregados familiares com necessidades financeiras.

A pobreza nas grandes metrópoles
«É importante que se resguarde a liberdade individual, mas há situações-limite. As autoridades não têm mecanismos. Todo o trabalho deve ser feito no sentido da canalização para a rede. Identifica-se a pessoa e depois a equipa vai ao encontro da mesma», conclui Nuno Jardim, garantindo que a pobreza tanto em Lisboa como no Porto permanece e as 110 pessoas que conseguiram tirar da rua são «uma gota no oceano» de todas aquelas que não têm teto e/ou comida.
«Divorciei-me do meu marido há um ano. Recebo 438 euros de subsídio de desemprego», começou por desabafar Laura (nome fictício), uma das 241.263 beneficiárias de prestações de desemprego no distrito de Lisboa há exatamente um ano. Mãe de um menina de cinco anos, recebe uma pensão de alimentos no valor de 100 euros, uma medida aplicada nos casos de divórcio e noutros em que «os alimentos devidos ao filho e a forma de os prestar são regulados por acordo dos pais, sujeito a homologação», de acordo com a lei. «É muito difícil. Neste momento, estamos a viver com os meus pais e é isso que me ajuda porque, de outro modo, não sei o que faria», explica a jovem de 30 anos, que trabalhou em várias áreas, como a da restauração e a da estética, «mas os contratos começaram a não ser renovados».

«Há relatos de pessoas que mostram uma grande vontade de se envolverem mais no mundo laboral», elucida Fernando Diogo, professor de Sociologia da Universidade dos Açores e coordenador do estudo A Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos, da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Nesta obra, traçou quatro perfis de pobreza em território nacional: reformados, precários, desempregados e trabalhadores.

«Este perfil dos precários é o mais heterogéneo dos quatro, porque fica entre os desempregados e os trabalhadores. Há várias categorias sociais que têm taxas de pobreza muito elevadas, como famílias de duas ou três crianças e famílias monoparentais», diz, sendo esta última a realidade de Laura «Descobrimos que muitos dos indivíduos que estão no perfil dos precários são os filhos adultos dos trabalhadores e vivem em casa dos pais», avança.
«Em abril de 2021, por exemplo, recebi um cabaz solidário de frescos e agora pedi apoio alimentar outra vez à Câmara», afirmou, referindo-se à iniciativa que ajuda 1500 famílias. O objetivo primordial deste projeto passou, em primeira instância, por permitir aos produtores que escoassem os seus produtos, depois do encerramento das feiras onde os vendiam, e, por outro lado, apoiar as famílias no pico da pandemia. Deste modo, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) adquire os produtos aos produtores e depois faz a distribuição pelas famílias mais necessitadas.
Recuando até ao ano passado, as conclusões do Barómetro Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), em maio de 2020, comprovou que as pessoas com menos rendimentos e com baixa escolaridade eram aquelas que tinham mais dificuldades em comprar as máscaras de proteção e em utilizá-las adequadamente.

É de realçar que, dos que responderam ao inquérito Opinião Social, da ENSP, 60% sentiram dificuldades em adquirir este equipamento de proteção individual. Os dados indicavam que uma em cada duas pessoas que ganham menos de 650 euros tinham dificuldades em comprar máscaras, pelo facto de «serem caras». Por seu lado, apenas uma em cada 10 pessoas com rendimentos superiores a dois mil euros reportava esta dificuldade. Assim, entendemos que as dificuldades não dizem respeito somente à comida, mas a todas as vertentes.

Os três D da pobreza
Eis os três D da pobreza enunciados por Fernando Diogo: o desemprego, a doença e o divórcio. «Para todos os efeitos, uma quebra de união de facto, formal e informal, tem o mesmo impacto. Não vemos só a separação dos orçamentos mas também que, em alguns casos, os divórcios tiveram impacto na inserção no mercado de trabalho porque complicam extremamente a vida às pessoas», explica o investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais. Além do desemprego, lembra que a doença «tem um impacto grande na vida destes indivíduos».
«Uma coisa que caracteriza muito a pobreza em Portugal é que é tradicional: tende a ser persistente ao longo da vida e a reproduzir-se entre gerações. Isso não significa que não haja pessoas que ingressaram há pouco tempo na pobreza, mas a maior parte das pessoas sempre a viveu», explicita Fernando Diogo. 

Já em 2019, o Estudo sobre o Poder de Compra Concelhio, do Instituto Nacional de Estatística (INE), o concelho de Lisboa apresentava as maiores diferenças entre os mais ricos e os mais pobres: o rendimento mínimo dos 10% mais ricos era 13,7 vezes maior do que o rendimento máximo dos 10% mais pobres (a média nacional é de 7,5). Dos 299 concelhos para os quais existiam dados disponíveis, o rendimento bruto anual máximo dos 10% de população mais pobre de Lisboa (3.489 euros em 2017) era mais baixo do que o de 239 concelhos.

No Porto, a realidade não é em nada distinta. «Não tenho dinheiro para lareiras, caloríficos, ar condicionado ou seja o que for. Tanto luxo e dinheiro também acabam por turvar a mente», começa por dizer Adelaide (nome fictício), residente no concelho do Porto. «Sempre me habituei a viver com pouco», adianta a mulher de 71 anos que é uma das 331 998 beneficiárias de pensões de velhice no distrito, segundo os dados mais recentes disponíveis no site oficial da Segurança Social. 

Mais de dois milhões de portugueses encontravam-se em risco de pobreza ou exclusão social em 2020, ano marcado pela pandemia da covid-19, face aos rendimentos de 2019, indicam os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) a 19 de fevereiro do ano passado. Este indicador conjuga as condições de risco de pobreza, de privação material severa e de intensidade laboral per capita muito reduzida.

«Tenho a dizer que nos meses mais frios, viver dentro de casa foi insuportável. Vesti mais roupa, embrulhei-me nos edredãos. Quem dera aos sem-abrigo terem tanta roupa, cobertores e agasalhos como nós», esclarece a idosa, que sempre se considerou «uma sortuda», mesmo vivendo com dificuldades financeiras, e ilustra a taxa de 6,7% de privação material severa na região Norte veiculada pelo Observatório Nacional de Luta Contra a Pobreza, em 2019.
Nos dados recolhidos e analisados pelo INE em 2020, a taxa de privação material dos residentes em Portugal diminuiu para 13,5% (15,1% em 2019) e a taxa de privação material severa para 4,6% (5,6% em 2019). Esta realidade não é de estranhar no país onde, segundo o relatório mais recente da Estrutura de Monitorização do Estado de Emergência, cerca de 69% dos óbitos registados entre 28 de dezembro e 31 de janeiro foram devido à covid-19 e cerca de 26% ao frio extremo, tendo sido este o «o período de excesso de mortalidade mais longo desde 1980 e com uma intensidade extraordinária, em especial durante o mês de janeiro».

No que concerne aos sem-abrigo, em abril de 2021, Fernando Paulo, vereador da Câmara do Porto com os pelouros da Habitação e Coesão Social, assim como da Educação, explicou o seguinte: «Temos, de facto, preocupações que não são visíveis, muito trabalho social que se faz».  Fernando Paulo avançou ser essencial «potenciar os recursos para investir nas áreas da inovação do empreendedorismo e colocá-los ao serviço da cidade para ter um ponto de vista crítico, mas também de modelos de fazer a cidade e torná-la mais feliz».

Além dos mecanismos mencionados, no âmbito da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, a Câmara do Porto assume a coordenação do NPISA Porto – Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo. A título de exemplo, existem 201 sem-abrigo em Vila Nova de Gaia.

«Cabe ao NPISA fazer o diagnóstico, o planeamento e ativar as redes de resposta às pessoas em situação de sem-abrigo na cidade, potenciando o trabalho em rede e gerando complementaridade entre as várias instituições e entidades parceiras», elucidou Fernando Paulo, sendo que este núcleo encontra-se organizado em seis eixos de intervenção: acompanhamento social, emprego e formação, habitação, participação e cidadania, saúde e voluntariado.