Nick Cave. Uma vida repleta de perdas, drogas e dramas familiares

Acredita que toda a gente “é capaz de imaginar a grande dor que é perder um filho” e, ao mesmo tempo, que amar o mundo “é uma ação participativa e recíproca”. Nick Dave, perdeu o seu primogénito, Jethro Lazenby, na segunda-feira, com apenas 31 anos. Esta já é a segunda vez que o artista mergulha…

“Há sempre dor ao nosso redor. Isso é uma das únicas coisas que está garantida na vida… Haverá sempre excesso de dor. Por isso, a determinada altura temos de simplesmente deixar de fazer coisas que não queiramos fazer. Essa é a grande liberdade que obtemos à medida que envelhecemos. Aprendemos o que fazer e o que não fazer, o que será uma perda de tempo e o que não”. Entre as muitas reflexões conhecidas ao longo da vida e carreira de Nick Cave, esta é capaz de ser uma das mais adequadas para o triste momento que vive atualmente o artista australiano. A dor e a reflexão sobre a efemeridade da vida… Menos de sete anos após a morte de Arthur Cave – um dos frutos do casamento entre o cantor e a atriz Susie Bick – com apenas 15 anos, a tragédia voltou a sobrevoar a vida do também compositor. Na segunda-feira, 9 de maio, através de um comunicado divulgado pela HuffPost UK, o artista anunciou a morte do primogénito, Jethro Lazenby, de apenas 30 anos. “Com profunda tristeza, confirmo que o meu filho, Jethro, faleceu. Agradecíamos que dessem à nossa família alguma privacidade”, escreveu o cantor, sem adiantar a causa da morte que se mantém até agora desconhecida. 

Um filho rebelde Segundo a BBC, a morte acontece dois dias depois do fotógrafo e modelo ter saído da prisão, onde estava preso desde abril, depois de ter admitido ter agredido a mãe, a modelo australiana Beau Lazenby, em Melbourne, cidade da qual é natural. De acordo com a mesma publicação, a liberdade foi-lhe concedida sob algumas condições: “Ser submetido a tratamento de abuso de substâncias e não contactar ou se aproximar da mãe durante dois anos”. “É muito, muito importante que o seu caminho para a reabilitação seja muito mais positivo e que assim seja menos perigoso para a comunidade em geral e, em particular, para a mãe”, afirmou a magistrada durante a audiência.

Tudo aconteceu a 7 de março deste ano, dia em que Lazenby foi visto por Beau no seu alpendre, convencendo-a a deixá-lo passar a noite na sua casa. Na manhã seguinte, terá exigido à mãe que lhe fosse comprar cigarros, o que terá despoletado uma discussão, “durante a qual Lazenby deu uma joelhada no rosto de Beau, deixando-a a sangrar”. “Enquanto estava em frente da vítima, o acusado aproximou-se e agarrou-lhe os dois ombros com as mãos”, começou por dizer ao tribunal um procurador da polícia, acrescentando que este “se ajoelhou sobre a cara e o nariz da mulher, causando hemorragias e hematomas”.

Como a mãe não atendeu ao seu pedido, depois do momento violento, Lazenby saiu para ir comprar cigarros. Na ausência do filho, Beau correu para um pub próximo e ligou para a polícia para pedir ajuda. Não foi preciso muito tempo até que o modelo tenha sido detido e, mais tarde, ter-se confessado culpado de “uma acusação de agressão e de violação das ordens do tribunal”. No julgamento, a sua defesa, Sean Ghattas, argumentou que, recentemente, Jethro tinha sido diagnosticado com esquizofrenia, e que essa condição certamente lhe havia “toldado o discernimento”, o que, segundo a BBC, acabou por realmente afetar a decisão do juiz. 

Mas esta não foi a primeira vez que o jovem teve problemas com a justiça. Na verdade, desde pequeno que Jethro se mostrou uma criança um pouco revoltada, até porque, apesar da sua existência nunca ter sido escondida, nem sempre foi do conhecimento público: o pai e o filho só se conheceram quando este tinha já sete ou oito anos.

Jethro nasceu em 1991, na Austrália e, em 2012, contou numa entrevista à Evening Standard que cresceu com a mãe em Melbourne e só conheceu o pai até ter “cerca de sete ou oito anos”, apesar de saber quem ele era. “No começo não correu bem tendo em conta toda a merda que aconteceu… Tive de sair da sombra dele!”, confessou. Por sua vez, Nick Cave, já havia expressado o seu arrependimento numa outra entrevista em 2008: “Para meu eterno arrependimento não tive muito contacto com o Jethro na infância, mas agora temos um ótimo relacionamento”, revelou o artista. A verdade é que o modelo nasceu dez dias antes de Luke, o filho que o cantautor teve com a designer brasileira Viviane Carneiro, em 1991, que Lazenby descrevia como “muito diferente de si”.

Decidiu fugir do bairro operário de Collingwood, aos 16 anos, tendo por isso também abandonado cedo os estudos. Viajou rumo a Londres, sem um único tostão e nessa altura acabou por dormir no sofá de Lesley McShea, sua madrinha e amiga da mãe. Apesar de, segundo o mesmo, não estar a gostar da experiência, o seu gosto e assiduidade em festas, fê-lo conhecer muitas pessoas que o encaminharam até trabalhos de modelo. Até ao dia em que o ex-director criativo da Casa Dior, Hedi Slimane, reparou no jovem de cabelos negros e olhos claros, convidando-o para uma sessão fotográfica. Os dois deram-se bastante bem, e rapidamente, Jethro se tornou numa “estrela”, tendo assinado importantes contratos com marcas como Balenciaga, Lou Dalton e Versace. De acordo com o The Guardian, Slimane “fez dele um pin-up instantâneo para uma nova geração, uma inspiração de estilo para qualquer pessoa nascida demasiado tarde para se lembrar da primeira vez que o grunge reinou”.

Mas além da fama que tanto procurava e que o fez abandonar a casa da mãe, o jovem modelo, nesta altura, viu-se mais próximo do pai. Numa entrevista, chegou mesmo a contar que Nick Cave assistiu a um ou dois dos seus desfiles nas passarelas. “Estava realmente orgulhoso de mim. Penso que agora se apercebe como somos semelhantes em muitos aspetos”, lembrou. E não foi só na moda que o seu nome ficou conhecido. Jethro também desempenhou alguns papéis no mundo da Sétima Arte, tendo integrado o elenco de Corroboree, em 2007, de Ben Hackworth, e do premiado Eu Não Sou a Tua Princesa, em 2011, de Eva Ionesco. Contudo, longe das luzes da ribalta o jovem modelo debatia-se com problemas de saúde mental. Em 2018, foi condenado por múltiplas agressões à namorada, que chegou a ameaçar de morte, e cumpriu tempo de prisão. De acordo com o jornal britânico Daily Mail, Jethro também teve problemas com drogas. Em novembro do ano passado, chegou mesmo a ser preso por roubar um supermercado aberto 24 horas.

A primeira grande perda de Cave Esta é a segunda grande perda do artista australiano. Em 2015, Arthur, filho de Cave e Bick – que continua a ser atualmente a sua esposa e também é mãe de Earl, irmão gémeo de Arthur – morreu depois de ter caído de um penhasco em Brighton, no Reino Unido, enquanto passeava com um amigo, da mesma idade. A investigação acabou por concluir que o jovem estava sob o efeito de LSD, uma droga alucinogénica. Segundo conta o Daily Mail, depois de cair de uma altura de cerca de 20 metros, os médicos tentaram reanimar o adolescente, mas não puderam fazer nada para salvar a sua vida. Arthur acabou por falecer no Royal Sussex County Hospital vítima de ferimentos graves e danos cerebrais. A médica responsável pelo seu caso, Veronica Hamilton-Deeley, assegurou, à época, nas suas conclusões, que as duas crianças “sofreram os efeitos da droga antes de se separarem”: “É claro que a sua perceção estava totalmente desorientada e confusa e, por isso, elas não sabiam o que era real e o que não era”, elucidou. 

A morte do filho de 15 anos, teve grande impacto na vida pessoal e artística do pai, que lhe dedicou o documentário, One More Time with Feeling, focado na gravação do seu álbum Skeleton Tree e realizado por Andrew Dominik. Além disso, essa perda também inspirou o álbum Ghosteen, em 2019. O cantor tinha uma relação muito próxima com o filho e despediu-se publicamente descrevendo-o como “um menino bonito, feliz e amoroso”. Já com Jethro, tinha um relacionamento muito distante. Os dois mal se viam há anos, embora tivessem restabelecido o contacto recentemente.

No ano passado, o cantor chegou mesmo a revelar que, depois do trágico acontecimento de há sete anos, ele e a sua mulher decidiram mudar-se para Los Angeles, afirmando que Brighton ficou “triste demais” para que eles conseguissem permanecer. 

Numa entrevista ao The Guardian, dois anos depois, o artista desabafou sobre o seu processo de luto: “É difícil saber o que dizer. As pessoas costumam afirmar que não conseguem imaginar como seria perder um filho, mas, na verdade, podem imaginar como é. Muito se fala sobre o luto, especialmente a sabedoria convencional de que tu o fazes sozinho. Eu pessoalmente descobri que não é esse o meu caso. A solidariedade que recebemos após a morte de Arthur de pessoas que eu não conhecia, principalmente através das redes sociais, pessoas que gostam da minha música e se identificam, foi extraordinária!”, admitiu o artista acrescentando que “isso teve muito a ver com o filme de Andrew”. “A onda de emoção desencadeada nas pessoas e a maneira como elas escreveram sobre as suas próprias tristezas e sofrimentos foi monumental e incrivelmente útil para mim e para a minha família”, reforçou.

Um “legado” de drogas? Ao que parece a tendência para “fugir da linha”, o consumo de drogas e os problemas com a polícia, não foram apenas problemas que assombraram a vida dos seus falecidos filhos. Nick Cave também teve um crescimento turbulento. Nascido a 23 de setembro de 1957 em Warracknabeal, uma pequena cidade rural no estado australiano de Victoria, o artista é filho do falecido professor Dawn Cave e da bibliotecária Colin Frank Cave. O seu pai que ensinava inglês e matemática, desde cedo o meteu em contacto com literatura e prematuramente Nick Cave teve acesso a clássicos como Crime e Castigo, do escritor Fiódor Dostoiévskie, e Lolita, escrito pelo romancista russo-americano Vladimir Nabokov. Mas foi com o seu irmão mais velho que o jovem começou a ter contacto com a música, tornando-se fã de bandas de rock progressivo como King Crimson, Pink Floyd e Jethro Tull. Apaixonado por esse universo, aos 9 anos, juntou-se ao coro da Catedral da Santíssima Trindade de Wangaratta. Foi lá que aprendeu alguns aspetos básicos do canto. Mas aos 13 anos começaram os problemas. O pequeno Nick foi expulso da Wangaratta High School por mau comportamento e, em 1970, foi enviado para a Caulfield Grammar School, um colégio interno. Depois disso, apesar de parecer que o seu comportamento havia melhorado, já as drogas tinham entrado na sua rotina. E a trágica morte do seu pai num acidente de carro, quando este tinha 19 anos, piorou a situação. Aliás, quando a mãe lhe contou sobre a morte do pai, este estava detido sob acusação de roubo. Mais tarde, numa entrevista, o cantor lembrou o momento: “O meu pai morreu no momento da minha vida em que eu estava mais confuso”, admitiu, acrescentando que essa perda “criou um vácuo na sua vida”. 

Após esse momento traumatizante, Nick decidiu ir estudar pintura no Caulfield Institute of Technology, mas desistiu pouco tempo depois para seguir profissionalmente a música. Nessa altura, conheceu também a heroína. Em setembro de 2018, Nick Cave criou um blog chamado The Red Hand Files onde responde periodicamente a perguntas dos seus seguidores e aproveita para refletir sobre alguns dos episódios mais difíceis da sua vida. Foi nele que o artista admitiu que viveu um grande problema com drogas, coisa que negou durante muito tempo. Nos primeiros anos da sua carreira, com a banda Birthday Party, o cantor australiano chegou mesmo a ser conhecido como “Nick Cave contra o mundo”. Muitos concertos terminavam a meio quando o músico saltava do palco e se envolvia em sessões de pancadaria com alguém na sala. Numa entrevista à Visão, interrogado sobre como reagiria se um dos seus filhos tivesse uma juventude parecida com a sua, “rebelde e com vontade de experimentar tudo”, Cave respondeu que preferia que estes chegassem ao pé de si e lhe dissessem que tinham um problema com drogas, do que “aparecessem com uma bola de futebol numa mão e um pack de seis cervejas na outra, com aquele tipo de expressão idiota e perdida, a dizer que queriam ir para Portugal para se divertir numas sessões de pancadaria”. “Isso seria muito mais preocupante para mim! Acho que com isso não conseguiria lidar muito bem (…) Se o meu filho fosse como eu fui, esse não seria o pior dos meus pesadelos. Tenho um grande amor pela vida, a arte, a literatura, a música. É esse tipo de coisas que me mantém vivo”, respondeu.

Agora, o cantor que não só é conhecido pelo seu trabalho no rock, com os Nick Cave and the Bad Seeds – onde explora temáticas como religião, morte, América e violência – mas também pelas suas músicas românticas, como a Into My Arms, do disco The Boatman’s Call, de 1997, e pelos filmes que escreveu, como A Proposta, que estreou em 2005, ou Dos Homens Sem Lei, em 2012, fica com dois filhos : Luke e Earl, de mães diferentes. O segundo, de 21 anos, seguiu a carreira de ator, tendo integrado o elenco das séries The End of the F***ing World, que começou em 2017 e terminou em 2019, Alex Rider, de 2020, e do filme The School for Good and Evil, deste ano, onde trabalhou ao lado de grandes nomes, como Charlize Theron, Ben Kingsley ou Laurence Fishburne.

“Amar o mundo é uma ação participativa e recíproca – o que lhe dás é o que retorna. Viverás dias de amor que farão a tua cabeça girar, que guardarás para sempre. Descobrirás que o amor é uma espécie de vivacidade sobrecarregada, e tudo o que é de verdadeiro valor no mundo é animado por ele. E, sim, a mágoa aguarda o fim do amor, mas descobrirás com o tempo que isso também é um presente – essa pequena morte – da qual renascerás, uma e outra vez”, escreveu o cantor num texto no seu blog. Esperemos que depois desta perda, ancorado no amor, o artista renasça de novo.