por Maria de Fátima Bonifácio
Historiadora
Nas últimas eleições legislativas, o Chega, que até ali tinha um único deputado solitário, obteve perto de 400.000 votos e viu a sua representação parlamentar engordar até doze deputados, tornando-se na terceira força política do país. A perturbação entre os partidos instalados no sistema foi visível e audível. Como era possível um partido tão reaccionário, extremista e racista ainda por cima, ter captado a preferência de tantos milhares de portugueses? Haverá muitas respostas, mas há uma que a meu ver é a principal: o Chega disse coisas até então silenciadas, coisas que era proibido dizer na praça pública. Por outras palavras, o Chega rompeu a censura ideológica estabelecida. Deu voz a perto de 400.000 pessoas que não se reviam nos discursos oficiais, que não se dirigiam às suas preocupações nem se acordavam com a visão do mundo delas.
Logo a seguir às eleições, o establishment desencadeou uma campanha feroz contra o Chega, pretendendo fazer deste partido um pária sem direito de cidade. A estratégia será encapsular o Chega dentro de um cordão sanitário, para que não contamine os partidos respeitáveis pela sublimidade dos seus ideais. É quase divertido assistir à competição entre os dois candidatos à presidência do PSD em torno da repugnância que o Chega lhes inspira. Em entrevista ao Expresso no dia 13 de Maio, Luís Montenegro é taxativo. Perguntado sobre a possibilidade de um acordo parlamentar com o Chega, respondeu peremptoriamente: «Não há nenhuma possibilidade de ideias radicais, extremistas, xenófobas fazerem parte do programa político do PSD. Nenhuma ! Isso é uma linha vermelha inultrapassável.» Alternativamente, Montenegro propõe-se «ir buscar os votos todos» de quantos votaram no Chega, e, se conseguir arrebanhar também os que votaram na Iniciativa Liberal, parece-lhe que, «com um PSD forte», a maioria absoluta está ao seu alcance. Puro irrealismo. Montenegro ressalva, no entanto, que o seu principal adversário é o Partido Socialista, afirmando que não «vai fazer o frete ao PS de transformar o Chega no centro da acção política do PSD». Esclarece ainda que, pelo que observou localmente, «não há nenhum social-democrata que possa pôr em causa o acordo político nos Açores», onde o PSD firmou com o Chega um acordo de incidência parlamentar. Em suma, Montenegro não fecha a porta, em absoluto, a um entendimento parlamentar com o partido maldito.
Lendo a entrevista de Jorge Moreira da Silva ao mesmo jornal já citado, um crítico do acordo dos Açores em 2020, fica-se com a impressão de que o seu principal adversário é o Chega, e não o socialismo. O seu repúdio por qualquer aproximação ao Chega é ainda mais veemente do que o traçado das linhas vermelhas por parte do seu concorrente. Qualquer ambiguidade nesta matéria só prejudicaria o PSD. Em 2020, criticou o acordo dos Açores. «Comigo, articulação com o Chega nunca podia acontecer: assunto arrumado.» O que preocupava e preocupa Moreira da Silva, é que qualquer aproximação ao Chega a nível regional produza um efeito negativo ao nível nacional. Em seu entender, já produziu: O acordo dos Açores foi, segundo a sua análise, «a razão principal pela qual perdemos as eleições legislativas e o PS teve maioria absoluta.» Eis um diagnóstico de muito difícil ou impossível digestão. Penso que o Chega e a Iniciativa Liberal serão aliados indispensáveis se se quiser derrotar o socialismo: em conjunto, somam quase 700.000 eleitores!
Neste cenário, não teríamos o que foi pejorativamente chamado ‘geringonça’. Teríamos acordos sérios e formais entre três forças políticas de direita ou centro-direita, contrastando com os enten-
dimentos informais, aleatórios e incertos entre os partidos que formaram a ‘geringonça’, que acabou como acabou. Não espanta. Entre esses partidos havia rivalidades e contradições insanáveis. Desde logo entre o PCP e o Bloco, mas também entre estes e o próprio PS. O PCP compete pela sua implantação sindical e pelo primeiro lugar na luta pela melhoria das condições de vida do povo trabalhador. (Já não se fala em ‘classe operária’.) O Bloco, que o PCP não leva a sério, também disputa este último terreno. Mas ostenta um ar mais arejado e modernaço, tendo-se imposto como campeão das ‘causas fracturantes’, que se vão esgotando e de que neste momento resta apenas a eutanásia. O mainstream do PS é genuinamente democrático e apoiante de uma economia de mercado, com a salvaguarda do Estado Social. A ‘geringonça’ morreu de morte natural.
Ora o PCP não só é anticapitalista como despreza a ‘democracia burguesa’. Alimenta o mesmo sonho desde há mais de um século: conquistar o poder e estabelecer uma ‘ditadura do proletariado’. Ou seja, subverter por completo a ordem político-social vigente ainda que gradualmente e à socapa. Que não haja dúvidas a este respeito: o PCP move-se no quadro de um regime democrático com ideias reservadas: na realidade e em essência é um intruso interesseiro. Na realidade e em essência, continua fidelíssimo ao marxismo-leninismo-estalinismo, uma herança ideológica sagrada de que se considera depositário e guardião contra tudo e contra todos. Veja-se a posição face à guerra da Ucrânia, em que toma o partido de Moscovo em nome da veneração da Mãe-Rússia, que pariu a Revolução de 1917. Stalin costumava dizer que a morte de um homem é uma tragédia – mas que a morte de um milhão era apenas uma estatística. O PCP rege-se por este dictum. Por isso nunca condenou os monstruosos crimes de Stalin, que cometeu a proeza de liquidar muitos mais milhões de pessoas do que Hitler. Alguém quer mais extremismo, mais radicalismo do que isto? E, no entanto, a ninguém passou pela cabeça isolar o PCP e transformá-lo num pária expelido da Casa da Democracia. Já o Chega não merece uma tal condescendência; é tratado como se tivesse peçonha. Porquê esta disparidade de tratamento ? Porque o PCP é de esquerda e o Chega é de direita. Em Portugal, desde 1974, não há licença para ser de direita.