Deus é mulher

‘Deus é negra e por uma razão simples: se o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, então Deus, desculpe, é muito parecido comigo. É negra e é mulher’ – Paulina Chiziane

Por João Cerqueira

A escritora moçambicana Paulina Chiziane, vencedora do Prémio Camões, afirmou numa entrevista ao Observador que «Deus é negra e por uma razão simples: se o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, então Deus, desculpe, é muito parecido comigo. É negra e é mulher». Eu também estou convencido de que Deus é mulher, mas tenho dúvidas de que seja parecido com a escritora. Talvez escreva tão bem quanto ela, mas poderá ter outra imagem. Deus poderá ser uma mulher negra, mas também poderá ser uma mulher asiática ou ameríndia. Já uma Deusa branca, no século XXI, mesmo à imagem e semelhança da Greta, não seria de bom tom. Acrescento ainda que temos motivos para crer que esta nova Deusa é igualmente lésbica ou transexual, além de vegetariana e vegan. 

Um Deus mulher reabilitará as mulheres bíblicas anteriormente condenadas. Eva deixará de ser a responsável pela expulsão do paraíso para se tornar na mulher que ensinou à humanidade a importância da curiosidade e o valor do trabalho. E as filhas de Lot, em vez de duas taradas que embebedam e abusam do pai, passam a ser heroínas na luta contra o patriarcado e inventoras do poliamor familiar.

Porém, isto vai criar alguns problemas na História da Arte. À exceção de William Blake – homem que tinha visões e ouvia vozes – em cujas representações do Pecado Original Eva surge como uma Vénus triunfante que seduz Satanás em vez de ser seduzida, enquanto o pobre Adão dorme ou olha para o lado como um personagem secundário, muitos artistas terão de ser corrigidos. O principal será Miguel Ângelo, esse misógino que pintava mulheres como se fossem homens. No teto da Capela Sistina, além de ser necessário repintar aquelas mulheres com braços de culturista e pés de Adamastor, é preciso transformar o Deus barbudo que estica o seu dedo para insuflar vida em Adão numa bela Deusa negra, asiática ou ameríndia, justamente acompanhada por Eva com a qual os exegetas poderão especular que mantinha uma relação amorosa. 

Enfim, a arte sacra nunca mais será igual.

Porém, com esta descoberta de Paulina Chiziane, Portugal é inesperadamente catapultado para a modernidade. Porque, se os pintores italianos, flamengos, franceses e espanhóis revelaram preconceitos machistas nas suas obras, houve uma pintora portuguesa que percebeu muito antes de Paulina que Deus era uma mulher. A genial Josefa de Óbidos. No século XVII, rodeada de inquisidores, misóginos, carnívoros e negacionistas das alterações climáticas, mesmo assim a grande pintora barroca intuiu a verdade sobre a natureza divina e pintou assombrosos Meninos Jesus com carinhas rosadinhas e cabeleiras femininas que mais parecem Meninas Jesusas – ai Jesus! Sim, são branquinhas, mas nesta altura os teólogos ainda discutiam se os índios teriam alma, as mulheres não podiam votar, não tinham sido inventados os pudins instantâneos nem as manas Mortágua. Eram tempos obscuros que a luz de Josefa começou a romper. 

Um Deus feminino, como a Deusa-Mãe Terra cultuada pelos homens do Paleolítico, mas não tão feia como aquelas Vénus cabeçudas e mamudas, vai decerto tornar o mundo melhor. Expurgada dos defeitos masculinos, como a paixão pelo futebol e o fascínio pelos carros, a nova Deusa inspirará a humanidade com o seu gosto pelas relações humanas, idas às  compras e curiosidade sobre a vida alheia. 

Porém, atrevo-me a pensar que certas características masculinas do Deus do Antigo Testamento, como o poder lançar pragas e enviar anjos exterminadores, poderiam ser de vez em quando usadas para desbastar ervas daninhas no novo Jardim do Éden. Por exemplo, sobre o Kremlin, o ditador da Rússia e o Quim da Coreia.