por Dulce Rocha
A regra sobre a natureza dos crimes quanto à queixa, obedece sobretudo à gravidade do crime, entendida não apenas com base no bem jurídico tutelado pela norma, mas também com o dano do resultado, e de acordo com a culpa em sentido lato.
Claro que o Homicídio é um caso especial, por causa da vida, que é um bem jurídico superior. Daí que, quer o doloso, quer o negligente fosse sempre crime público, por ser sempre gravíssimo tirar a vida a alguém, embora, como é óbvio não fosse indiferente se o autor tivesse querido matar ou se tivesse causado a morte por falta de cuidado e daí as penas aplicáveis serem substancialmente diferentes.
Mas, em princípio, assim sucedia igualmente nos crimes violentos, que em princípio não dependem de queixa para se dar início ao procedimento criminal. Enquanto o crime de furto, dependerá geralmente de queixa, já o crime de roubo devido à componente de violência na sua execução, será público.
Havia contudo excepções que decorriam da defesa intransigente da família, da desconsideração do estatuto das mulheres e da desvalorização do sofrimento das mulheres e das crianças.
Bastará lembrarmo-nos do poder de correcção do chefe de família antes da Constituição de 1976 para compreendermos do que falo.
E foi assim que, depois de em 1982, o novo Código Penal ter introduzido o crime de maus tratos conjugais, atribuindo-lhe natureza pública, logo a revisão de 1995 lhe passou a atribuir natureza semi-pública, o que na altura foi entendido como um retrocesso por algumas ONG de Direitos Humanos. Um conjunto de associações, inconformadas com esse facto, não desistiu de pôr em causa a alteração e em Março do ano 2000, foi reintroduzida a regra da desnecessidade da queixa para se dar início ao processo.
Ou seja, discussão muito semelhante já aconteceu com a violência doméstica. Mais, também aconteceu com os crimes sexuais contra crianças. Participei nestas duas discussões e por isso estou numa posição privilegiada para tomar parte nesta também.
Sobretudo, porque pertenço a uma geração que estudou com base em ideias feitas que já não deveriam influenciar tanto os nossos decisores, mas que ainda assim, persistem, apesar dos estudos e das conclusões opostas aos preconceitos sexistas que fundamentam leis de um conservadorismo revoltante.
Não obstante, os crimes sexuais foram talvez os que mais alterações sofreram nos últimos anos, muito devido ao maior valor agora reconhecido dos Direitos Humanos, quer a nível Nacional, quer a nível Internacional. Os bens jurídicos pessoais foram valorizados, embora alguns ainda se recordem da maior importância que era atribuída aos bens jurídicos patrimoniais na nossa legislação penal.
Ainda temos presente a norma relativa à possibilidade de aplicação da atenuação especial do crime continuado aos crimes sexuais, em particular contra crianças, que só viria a ser revogada em 2010, após diversos apelos de ONG de Direitos Humanos, como o Instituto de Apoio à Criança e a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas.
Mas a resistência à mudança é tão profunda que logo se substituiu a tese do crime continuado por uma outra muito semelhante a que chamam de “trato sucessivo”, e que persiste nos nossos Tribunais superiores apesar das múltiplas críticas que vêm sendo suscitadas, visto que faz renascer os mesmíssimos pressupostos e os mesmíssimos resultados de penas levíssimas e suspensas na sua execução para casos de crueldades prolongadas infligidas às mulheres e às crianças.
Mariana Vilas Boas, num recente artigo que escreveu para o “Público” salienta a incoerência de alguns acórdãos em que só a desvalorização do sofrimento das vítimas pode explicar o que é sentido pelos agressores como impunidade.
Incoerência que põe em causa a unidade do sistema jurídico, porquanto o legislador tem vindo a promover alterações com vista a respeitar o direito ao reconhecimento e à reparação das vítimas, que depois têm pouco significativas consequências nas penas aplicadas.
Para as diversas alterações no domínio dos crimes sexuais, desde o âmbito dos respectivos conceitos legais às molduras penais, foram valiosos os contributos do movimento feminista, dos estudos e dos inquéritos de vitimação, do acesso das mulheres a profissões que lhes estavam vedadas nas Universidades, nos Tribunais, na Diplomacia e na Política.
A partilha do conhecimento, o maior relevo dos aerópagos internacionais, as redes e as parcerias de ONG dos Direitos das Mulheres conduziram a Encontros, a Congressos e a Convénios muito participados, em que a exposição de ideias e práticas geraram Grupos de trabalho produtivos em que primeiro as Recomendações, e depois as Directivas e as Convenções fizeram o seu caminho.
Os Estados assinaram, adoptaram e ratificaram nos últimos trinta anos um conjunto de Pactos e Tratados, que reconhecem as mulheres como um dos grupos historicamente mais discriminados e que preconizam uma menor tolerância perante as violências, incluindo as sexuais de que continuam a ser as maiores vítimas.
Durante a Faculdade, diziam a muitos de nós que estes eram crimes contra a honra, e contra o pudor, o que sempre achei horrível e desconsiderante, porque jamais uma mulher violada, poderia em meu entender, perder a honra, e porque o pudor não fazia parte do que entendia serem os elementos deste tipo de crime. Que injustiça! Era definitivamente um crime contra a integridade pessoal, contra a liberdade de determinação sexual, mas no caso das crianças ainda é mais gritante este anacronismo. É um crime contra a sua dignidade e sobretudo contra o seu desenvolvimento integral.
Observei nessa altura que muitas pessoas por quem tinha a maior consideração, nem sequer se incomodaram com isso e continuavam a falar de coisas, que são obviamente secundárias.
Mas agora, ao aplicarem a tal tese do “trato sucessivo”, muito semelhante à tese do “crime continuado”, desrespeita-se a dignidade da mulher e da criança violada, visto que, após a primeira violação, praticamente não interessa o número de vezes que foi vítima de agressões sexuais.
No essencial, em meu entender, não evoluímos muito, pois as vítimas continuam a ser desconsideradas na sua integridade pessoal e na sua dignidade, o que aliás se me afigura ferido de inconstitucionalidade.
Recordo um acórdão de Outubro de 1989, bastante repugnante, em que a mulher era vista como a “presa” e que desculpabilizava os agressores de duas jovens jugoslavas que haviam sido violadas no Algarve, porque se tinham atrevido a pedir boleia na coutada do “macho ibérico” e que foi comentado pela Professora Tereza Beleza logo no primeiro Boletim da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, de Março de 1993.
Também me lembro de um caso de uma violência e crueldade muito chocantes de uma criança de dois anos que foi violada na Guarda, creio que por essa altura, ou seja, já nos anos 90 e que viria a influenciar a revisão do Código Penal de 1995, e terem dito que se tratava de um crime de atentado ao pudor com violência, porque não havia sido praticada cópula, mas sim “apenas” violências anais. Claro que não podia ter sido cópula. A criança tinha só dois anos!
Num caso que tive no Tribunal de Instrução Criminal de Almada de uma criança de sete anos que foi violada pelo pai e que ficou com rasgadura completa do períneo e com lesões irreversíveis, os médicos que a assistiram no Hospital de Dona Estefânia e o perito médico do IML diziam que era ainda tão novinha que o seu corpo ainda não conseguia manter sexo, sem que fossem causadas lesões sérias. Neste caso, que me impressionou imenso pela dor infligida e pela gravidade das lesões internas que provocou, já se sabia que iria ficar impossibilitada de procriar.
A criança violada na Guarda também sofreu obviamente lesões gravíssimas, tendo ficado com incapacidade de controlar os esfíncteres, mas a lei penal insistia em chamar ao crime de “atentado ao pudor”. A revolta foi enorme, a comunidade não aceitava essas denominações e mais uma vez a Professora Teresa Beleza escreveu um artigo memorável que foi decisivo para uma alteração legislativa que veio alargar o conceito legal de violação.
Veio depois a luta pela alteração do crime de abuso sexual de criança que sendo à data semi-público tinha o efeito perverso de ficcionar a queixa do representante legal, que na maioria dos casos era o pai agressor, o que deixava a criança inteiramente sozinha, desprotegida, à mercê do violador. Tive muitos casos destes, enquanto Magistrada do Ministério Público no Tribunal de Menores, o que era bastante frustrante, como calcularão.
Valeu-nos então a determinação e o empenho de duas Deputadas, Maria de Belém Roseira e Maria do Rosário Carneiro, que conjugando esforços conseguiram convencer os seus colegas no Parlamento e o crime de abusos sexuais de criança, sempre que praticado por ascendente ou alguém que tivesse uma relação de poder com a vítima, passou a crime público em Julho de 2001.
Esclareço que em 1998 tinha havido uma pequena “nuance”, introduzindo-se uma norma que dizia que o MP podia dar início ao Procedimento se o interesse da vítima o exigisse…
Só que esta redacção que é idêntica àquela que vigora actualmente para a violação, consentia interpretações diversas para casos semelhantes, o que era e é inaceitável. Ou seja, o mesmo facto poderia dar origem a processo em Vila Real de Trás-os-Montes ou em Vila Real de Santo António e não podemos tolerar que factos idênticos sejam tratados de forma diferente apenas porque ocorreram em lugares diferentes e foram apreciados por magistrados diferentes.
Por isso, e como desde há décadas ouço os mesmíssimos argumentos, propus-me fazer esse exercício de memória na esperança de que ajude a clarificar os espíritos.
Vamos então analisar: estes crimes são, na sua maioria, praticados por homens contra mulheres e meninas. Mas temos sabido de muitos meninos violados, quer dentro da família, quer sobretudo em instituições.
Sobrevivem com uma dor intensa, com um sofrimento profundo e muitos só passadas décadas conseguem revelar.
Como aceitar que têm de fazer queixa em seis meses, contrariando tudo o que hoje sabemos sobre o tempo de que algumas vítimas precisam para revelar o crime que sofreram?
Por outro lado, hoje já não duvidamos que há uma pluralidade de bens jurídicos violados, e que os valores supremos atingidos são como já referi, a integridade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual e a dignidade da pessoa violada, a que acresce o direito a um desenvolvimento equilibrado e saudável, no caso das crianças.
Nos inquéritos de vitimação, os números são avassaladores. O Conselho da Europa já fez campanhas em que aponta para uma em cada cinco crianças, sabendo-se que entre os meninos é um em cada sete e nas meninas uma em cada três.
Efectivamente, na Europa e nos Estados Unidos, esses inquéritos têm revelado que 1/3 das mulheres dizem ter sofrido violências sexuais. Em Portugal, as percentagens são iguais, até em instituições universitárias, o que significa que o número de queixas não corresponde, nem de perto, nem de longe, ao elevado número de crimes.
Num inquérito efectuado em Países da União Europeia que envolveu 42.000 mulheres, confirmou-se que a terça parte, ou seja 14.000 declararam ter sido vítimas de violências sexuais, mas que, dessas, apenas 10% se queixaram, o que significa que 12.600 mulheres não apresentaram queixa.
Inquiridas sobre as razões por que o não fizeram, a maioria disse que foi por medo, a seguir por não confiarem no sistema de justiça e só em terceiro lugar surge a vergonha. De qualquer forma, esta relaciona-se seguramente com a forma como são tratadas pelo sistema as mulheres vítimas de violências sexuais.
Creio que é insuportável sabermos que nem 1500 mulheres se queixem, como é insuportável que tenha havido 12 mil mulheres que tenham declarado ter medo de apresentar queixa.
No livro sobre violência sexual da Prof. Doutora Isabel Ventura, “Medusa no Palácio da Justiça”, é analisado um vasto conjunto de decisões judiciais. Há um denominador comum a muitas dessas decisões, proferidas durante mais de uma década, em que as vítimas são humilhadas e desconsideradas, ao mesmo tempo que o agressor é desculpabilizado. Isabel Ventura pensou neste título exactamente porque também Medusa foi violada por Poseidon, e foi expulsa do Templo de Atena, como se faz ainda hoje em alguns Países árabes em que a mulher violada é condenada à solidão ou até à prisão, pois um dos mitos que ainda perdura é aquele que atribui à vítima a responsabilidade da agressão e trata o violador com compreensão, por não ser capaz de resistir. Em vez de punir a prática mais desumana e ignóbil de ofender a mulher, todo o processo está construído de forma a desculpabilizar o violador.
Não obstante as múltiplas alterações legislativas, muitas vezes até parece que ainda estamos na vigência do velho código Penal do século XIX, o tal em que os valores protegidos nos crimes sexuais eram a honra e o pudor.
E mesmo agora que já sabemos corresponderem apenas a preconceitos e não a fundamentos robustos, continuamos a ver juristas com responsabilidades na Academia a dizer, por exemplo que os crimes de violação são raros e que mais raras ainda são as gravidezes que resultam das violações, pois as mulheres só engravidam se quiserem.
Da minha experiência profissional resulta precisamente o oposto, o que é confirmado pela evidência científica. Ou seja, não se trata apenas de uma questão empírica. Agora temos dados de pesquisa científica, com indicadores e metodologias científicas. Os crimes de violação são muito mais extensos do que se pensava há uns anos, as gravidezes decorrentes de violação são uma tragédia muito injusta, e as vítimas são jovens, muito novas, e em geral filhas, irmãs, sobrinhas, ou netas do violador, que as aterroriza com a sua própria morte ou com a morte de suas mães e irmãs.
Como transformar esta realidade perversa?
Decerto não será adequado manter tudo na mesma, pois não poderemos esperar que algo mude se não ousarmos alterar a lei e os procedimentos de queixa.
Como disse há pouco, estas questões da queixa vêm sendo debatidas não apenas entre nós, como a nível internacional.
Sempre houve quem se opusesse a que o crime de violência doméstica não dependesse de queixa. E sempre vi que havia uma enorme oposição a que o crime de abuso sexual de criança tivesse natureza pública.
Saliente de novo que a violência doméstica se tornou crime público em 2000 e os abusos sexuais de criança têm vindo progressivamente a ser reconhecidos como de natureza pública, primeiro em 2001 e depois, já após o Processo Casa Pia, em 2007.
Quanto à violação há ainda uma maior resistência, porque esse é um dos maiores redutos da dominação masculina.
Chega-se ao ponto de num caso de violação, ser punido o sequestro, mesmo que seja instrumental da violação e não se punir a violação, o que é incoerentemente absurdo.
Aliás, o tal artigo de que falei da advogada e activista Mariana Vilas Boas refere um Acórdão muito recente da Relação do Porto, de 2/2/2022, de um caso de violência no namoro em que não obstante serem infligidos maus tratos bastante severos e humilhantes, pois a vítima chegou a desfalecer, o agressor acaba absolvido por o Tribunal ter entendido que não se tratava de violência doméstica, mas sim de crimes dependentes de queixa, designadamente ofensas à integridade física simples, e tentativa de violação, e entretanto já haviam decorrido os seis meses durante os quais a vítima deveria ter apresentado queixa.
Ora, todos os textos convencionais falam de violências, incluindo a violência sexual, mas nós continuamos a separar a violência sexual com base no pudor, como se fazia para crianças de dois anos, vítimas aterrorizadas, cheias de dores, mas que a lei ficcionava morrerem de vergonha e pudor no meio da maior indiferença pela realidade.
E é assim que voltam os velhos argumentos do respeito pela autonomia da mulher. Nunca consegui entender porque algumas mentes bem intencionadas não se incomodam quando sete meses depois do crime as mulheres que decidem fazer queixa, são informadas que já se extinguiu por prescrição o seu precário direito de queixa, mas ficam preocupadas com o suposto pudor das que decidem não apresentar queixa, quando elas nos vêm dizer que foi o medo que afinal foi determinante.
Estranho sempre estes paradoxos: dois pesos e duas medidas, sobretudo se o número das vítimas que ficam excluídas é consideravelmente superior. Em suma, a solução não pode ser a de deixar tudo como está, pois conduz a injustiças enormes.
Aliás, no caso que referi supra, decerto sucedeu que a vítima só não apresentou queixa porque o MºPº decidiu dar início ao Processo, face à gravidade das lesões e à censurabilidade dos múltiplos actos ilícitos praticados, e por isso, até se poderá verificar uma situação de denegação de justiça, visto que provavelmente a não ter sido assim, a vítima teria tomado a iniciativa.
Nos outros Países, também houve discussões acesas. No Conselho da Europa, houve discussão também, mas o que acabou por prevalecer foi a consciência de que temos de ter presente a realidade. Vamos abandonar os mitos, as ideias feitas, as afirmações sem qualquer adesão à realidade.
Vamos conseguir encontrar uma formulação adequada. Não podemos é deixar perder irremediavelmente a prova e não é justo exigir que no prazo exíguo de seis meses, as mulheres decidam sobre a apresentação de queixa.
Relativamente ao argumentário que fala sobre as queixas contra a vontade da vítima, que mencionam pessoas que vêem violações… não me parecem narrativas verosímeis. Também nunca vi ninguém a ser violado e creio que nenhum de vós também alguma vez tenha visto. Mas tive muitos processos de violação, que ocorriam pela calada da noite, longe do olhar de quem quer que fosse.
Tive uma enfermeira que saíra de banco, três jovens estudantes que tinham saído das aulas e muitas, muitíssimas filhas e enteadas e sobrinhas e netas. A menina mais novinha tinha pouco mais de um ano, ainda usava fralda e a primeira vez que os avós denunciaram, no longínquo ano de 1995, o processo foi arquivado no DIAP, porque o crime era então semi-público. Só da segunda vez, tinha a menina então quatro anos, foi possível prosseguir. Salvo casos raros, os violadores planeiam tudo meticulosamente, escolhem as suas vítimas e premeditadamente praticam os crimes, aterrorizam as vítimas e são elas que acabam por apresentar queixa.
Quando o fazem logo a seguir, poder-se-á dar início ao procedimento criminal com recolha de prova relevante. E esta é uma questão importante: procurar preservar a prova. Se não houver queixa logo a seguir, tudo se torna mais difícil, mas ainda assim, poderá haver casos mais graves em que por exemplo se a vítima for ao Hospital, deve ser possível recolher prova para tornar viável, por exemplo, uma análise ao ADN do suspeito. Dir-me-ão que pode haver casos em que a vítima quer desistir. De acordo com o tal inquérito de que vos falei, era o medo a primeira causa para a não apresentação de queixa. O mesmo sucedia antes do ano de 1982 e depois de 1995 a 2000 com os maus tratos conjugais, hoje violência doméstica. Por consequência, estou absolutamente convencida que se for feito um investimento na segurança das vítimas, vai haver resultados, como houve na violência doméstica, em que progressivamente há mais queixas e simultaneamente há menos femicídios.
Acresce que poderemos sempre introduzir cláusulas de salvaguarda para que seja respeitada a vontade da vítima, embora entenda que deverão excluir-se situações em que ela quer desistir por coacção ou ameaça do agressor, pois isso seria afinal o fracasso do sistema. A solução tem de passar por garantir segurança e protecção às vítimas e não abandoná-las à sua sorte. Isso é que seria intolerável.
Ontem foi divulgado o Relatório Anual de Segurança Interna e de entre os crimes violentos, a violação foi o que mais subiu. Houve mais 26% de queixas.
Claro que podemos pensar positivo e ter esperança que isto signifique que houve menos casos por denunciar. Esperemos que seja isso, mas não podemos ignorar as cifras negras. Temos de recusar ficar apenas pelos 10% de queixas. Queremos destruir o iceberg, para que estas vítimas possam beneficiar do reconhecimento da sua dor, do trauma, da perturbação do stress pós-traumático, que tenham direito a reparação, à recuperação psicológica, a um acompanhamento psico-terapêutico para reconstruir a sua auto-estima e para que consigam voltar a viver com qualidade e sem medo de sair à rua.
Devemos isso à vítimas. Tudo fazer para que possam ter uma vida tranquila e feliz. E isso só pode suceder se houver também o efeito reparador das penas.
Aliás, estudámos que as penas têm efeitos de retribuição importantes, e bem assim efeitos de prevenção geral e especial, além do efeito da ressocialização. Por isso, por todas estas razões, a aplicação da pena é necessária. Se não viabilizarmos o procedimento, não haverá julgamento e muito menos condenação e pena.
A Convenção do Conselho da Europa, conhecida por Convenção de Istambul, preconiza justamente que estes crimes deixem de depender de queixa.
Não se ignora que a formulação que hoje temos visou dar um mínimo de forma àquela exigência. Mas decididamente não satisfaz, pelas múltiplas razões que expus.
O conjunto de bens jurídicos violados é muitíssimo valioso, pois além da liberdade como vos disse, temos a integridade pessoal e a dignidade, que é o valor precioso sobre o qual repousa o nosso Estado de Direito.
Não vamos permitir que fiquem impunes os autores de tamanhas atrocidades.
Enquanto o crime depender de queixa, as vítimas têm de apresentar queixa em seis meses e sabemos bem, porque a vida o tem demonstrado que esse prazo é insuficiente para as vítimas que não o fazem logo.
Precisam de ponderar, precisam de apoio, precisam de reflectir, precisam de tempo. Retirar-lhes esse direito pelo mero decurso de seis meses, isso sim, será negar-lhes o respeito pela autonomia da sua vontade, em casos gravíssimos de comportamentos altamente censuráveis e que sabemos têm elevada taxa de reincidência.
Vamos conseguir um consenso. Crimes tão hediondos não podem ficar impunes. A petição que reuniu mais de cem mil assinaturas demonstra que não podemos ficar indiferentes. Trata-se de uma adesão considerável.
A nossa comunidade entende esta violência como insuportável.
Não podemos ignorar.
A Dignidade das vítimas merece o nosso respeito.