As delícias da ociosidade

Estas duas ideias geniais do PM – a da semana de quatro dias e o aumento dos salários no privado em 20% – não passaram de uma operação de charme e demagogia

por Maria de Fátima Bonifácio
Historiadora

Em 2016 e nos dois ou três anos seguintes, surgiu nos meios de comunicação social, especialmente na imprensa, um inesperado interesse pelo RBI – Rendimento Básico Incondicional: todas as pessoas receberiam do Estado, pelo simples facto de terem nascido, um rendimento mensal que as dispensaria de trabalhar. A perspectiva de uma vida sem trabalho obrigatório fascinou muita gente. Finalmente, chegados ao século XXI, os homens teriam a possibilidade de desenvolver plenamente os seus talentos, de fruir de uma vida livre, de expandir os tesouros de preciosa criatividade encapsulados no interior do seu ser, de se embrenhar nas delícias purificantes e regeneradoras da Natureza, de se entregar às alegrias da família a tempo inteiro. Por extravagante que tudo isto possa parecer, o tema do RBI deu origem a reuniões na Assembleia da República e a colóquios na Universidade. Mas o patente lunatismo de tudo isto, a inexequibilidade de tudo isto acabaram por esfriar o entusiasmo inicial. Nunca mais ouvi falar no RBI. O bom senso prevaleceu.

Mas a ideia de fazer do trabalho uma componente acessória ou subalterna das nossas vidas não morreu. Em voga está agora, graças à recente intervenção do primeiro-ministro, a ideia de encurtar a semana de trabalho para quatro dias. Teríamos assim uma espécie de ponte todos os fins de semana do ano: de Quinta a Domingo ! É difícil imaginar o que passou pela cabeça de António Costa, pois não se consegue acreditar que ele não soubesse ser esta a pior altura para decretar uma tal medida. Quase em simultâneo, Costa já tinha aconselhado ou incentivado o sector privado da economia a aumentar os salários em 20% ao longo da legislatura. Ora também neste caso não podemos acreditar que ele não saiba que os salários são condicionados pela produtividade e não se aumentam ‘porque sim’. Conjugando estas duas ideias geniais do primeiro-ministro, a única conclusão é de que ambas – a da semana de quatro dias e o aumento dos salários no privado em 20% – não passaram de uma operação de charme e demagogia. De que os portugueses bem estão precisados, para se distraírem do desastre que tem sido esta maioria absoluta. Além disso, o que não é de somenos, a polémica em torno daquelas ideias peregrinas também serve para desviar as atenções do caos instalado na Saúde, do mal-estar que se vive nas escolas, da crónica desgraça na Justiça. Os três pilares do Estado Social estão muitíssimo amolgados devido à degradação que sofreram durante o já longo consulado de António Costa.

A semana de quatro dias seria mais um passo na desvalorização do trabalho enquanto actividade com uma dimensão ética e social. Não por acaso, quem leva a vida ao alto, quer dependa de heranças, quer da generosidade paterna, quer de subsídios, não é visto com bons olhos pela comunidade. Ser um fainéant não é coisa que se recomende, bem pelo contrário, é considerado indigno. Devemos portanto concluir que o trabalho dignifica. Nem sempre aconteceu assim, pelo contrário: nas civilizadíssimas Grécia e Roma o trabalho estava reservado para os escravos. A civilização burguesa, nascida nos burgos medievais da Europa, foi a primeira da História a dignificar o trabalho e a conferir-lhe um valor moral, ético e cívico. Ao longo do Antigo Regime monárquico, os aristocratas ‘serviam’ o rei, não trabalhavam, dois conceitos bem diferenciados na cultura dinástica então dominante. O trabalho era coisa para criados e burgueses!

Li que a semana de quatro dias foi experimentada na Câmara de Mafra de 2009 a 2013. De início viveu-se a nova vida com entusiasmo geral. Faziam-se as compras para casa às Sextas e depois tinha-se o fim de semana inteiramente livre dessa maçada e afins, inteiramente dedicados à família e ao lazer. Depois, gradualmente, a coisa começou a fartar. Trabalhava-se mais uma hora por dia, para compensar a falta da Sexta-Feira, o que começou a ser ressentido como cansativo. Depois, os fins de semana começaram a parecer demasiado longos: arrumadas as compras à Sexta, o que fazer nas 48 horas seguintes? As crianças tornam-se maçadoras e, para os adultos que as não têm, passar a tarde a ver montras em centros comerciais acaba por fartar – e frustrar. As delícias do ociosidade eram uma miragem. Afinal, despachar as compras ao Sábado era uma boa maneira de ocupar algumas horas. Precisamente por esta razão é que a liberdade não interessa à maioria das pessoas. Liberdade para fazer o quê? Como passar o tempo?

Nasci e cresci numa família burguesa em que não trabalhar era um anátema. O trabalho era quase sagrado. Tanto o RBI como a semana de quatro dias constituem maneiras afins de o desqualificar.