Pulseira eletrónica para os médicos

Poderá gastar-se mais dinheiro, poderão acontecer algumas coisas desagradáveis aos doentes – que, aliás, acontecem em todo o lado –, mas que importa tal se o SNS Socialista foi salvo?

Por João Cerqueira

O Serviço Nacional de Saúde nunca esteve tão mau. Há urgências fechadas, falta de médicos em diversas especialidades e uma exaustão generalizada. Os doentes são mal atendidos ou têm de rumar a outros hospitais. Acontecem tragédias. Sucedem-se insultos e agressões. Os hospitais, ao invés de salvar vidas, tornaram-se locais perigosos para os doentes, os profissionais de saúde e os seguranças de plantão.

Pede-se a cabeça da ministra da Saúde, Marta Temido, acusada de ser a principal responsável por este caos. Entre várias críticas, como a de não ouvir os médicos e os enfermeiros, imputa-se-lhe a responsabilidade de ter acabado com as Parcerias Público-Privadas (PPP) que, segundo o Tribunal de Contas, geraram poupanças estimadas em 203,3 milhões de euros – além de prestarem melhores serviços à população. 

Ainda que possa haver algum fundamento nesta crítica – as PPP estavam realmente a resultar –, ela ignora o cerne da questão. Marta Temido é a ministra da Saúde mais à esquerda desde o PREC e, como tal, foi resgatar o socialismo da gaveta onde alguém o havia metido. Logo, o fim das PPP pode até resultar em maiores gastos e piores resultados na Saúde, mas obteve um feito notável: acabou com as negociatas que beneficiavam os privados – beneficiavam também os doentes, mas isso é irrelevante. 

Um verdadeiro ministro socialista não pode entregar aos privados os cuidados de saúde que não é capaz de garantir aos cidadãos. Não pode fazer um pacto com o diabo. E tudo se torna mais infernal quando os privados conseguem tratar melhor os doentes gastando menos dinheiro ao Estado. Ora isto é absolutamente inadmissível para um socialista que se preze. Como pode o Estado expor desta maneira a sua incompetência? Como pode o Estado mostrar aos portugueses que os privados gerem melhor a sua saúde e os seus impostos? Em suma, como pode o Estado admitir que o modelo privado é superior ao modelo socialista?

Imagine-se que os cidadãos começam a matutar nisto, passam da saúde para a educação, da educação para a economia, depois juntam as pontas todas, questionam a razão de pagarem impostos tão altos e, por fim, chegam à conclusão de que poderiam ter um nível de vida melhor sem socialismo?

Marta Temido percebeu isto melhor do que ninguém e, com o apoio incondicional do primeiro-ministro, salvou o Socialismo da vergonha que as PPP lhe estavam a causar. Tal como Dom Quixote, ela luta por um mundo melhor. Mas, ao contrário dele, arremete contra inimigos reais. Montada num Rocinante rosa e empunhando uma lança vermelha, derrubou os gigantes da boa gestão hospitalar. Ainda resta um de pé, mas em breve irá tombar também. 

Poderá gastar-se mais dinheiro, poderão acontecer algumas coisas desagradáveis aos doentes – que, aliás, acontecem em todo o lado –, mas que importa tal se o SNS Socialista foi salvo?

Porém, não basta salvar o SNS socialista. É preciso punir os responsáveis pela hecatombe: os médicos e os hospitais privados. Esquecendo a sua missão, os médicos começaram a debandar dos hospitais públicos para os privados, atraídos por melhores salários e melhores condições de trabalho. A serpente privada ofereceu-lhe uma maçã que não estava podre, o Dr. Adão e a Dra. Eva trincaram-na, mas quem foi expulso do paraíso foram os doentes. 
Que Esculápio lhes dê com o bastão das serpentes na cabeça.

Veja-se o exemplo contrário dos pais da medicina. Hipócrates nunca abandonou o Sistema Nacional de Saúde Grego; Galeno preferiu tratar os gladiadores romanos a enriquecer; Amato Lusitano, Garcia da Horta e Miguel Bombarda recusaram os convites que a Fundação Champalimaud lhes endereçou. Eram gente de outra cepa, que não tinham sindicatos, nem iam fazer queixinhas à televisão. Não eram «gajos, cobardes».

A ministra Marta Temido não tem, pois, de negociar com estes médicos e médicas que usam os estetoscópios para descobrir onde tilintam as moedas. Tem, sim, de prosseguir a sua política de combate às negociatas da saúde privada e atingir o desejável corolário: o fecho dos hospitais e das clínicas privadas. Depois, basta impor o termo de identidade e residência aos médicos para eles não emigrarem, pulseiras eletrónicas e algemas para os recalcitrantes, importar uns cubanos habituados a trabalhar de borla, afastar jornalistas abelhudos das urgências, e já está

O Sistema Nacional de Saúde Socialista será salvo. E os hospitais espanhóis não ficam assim tão longe.