por Jónatas E. M. Machado
Professor de Direito Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e da Universidade Autónoma de Lisboa (FDUC/ UAL)
O Supremo Tribunal dos Estados Unidos anunciou há pouco a sua sísmica decisão no caso Dobbs v. JWHO que rejeitou dois precedentes judiciais, Roe v. Wade (1973) e Planned Parenthood v. Casey (1992), que haviam estabelecido, a nível federal, o direito a abortar. O mérito da decisão, quer no plano substantivo dos direitos das mulheres e dos seres humanos não nascidos, quer no plano institucional das competências do Congresso e do Supremo Tribunal ou dos poderes dos estados federados e do Estado federal, não constitui o objeto central desta reflexão. Apresentamos somente algumas reflexões que a decisão nos suscita.
Não existe uma separação absolutamente estanque entre religião, moral, política e direito. Quando estejam em causa questões sociais essenciais, envolvendo vida, morte, sexualidade, família, migrações, opressão ou pobreza torna-se difícil afirmar, delimitar e sustentar indefinidamente direitos que se mostrem contrários, nas suas implicações, a valores e princípios morais profundamente enraizados na história e na cultura de uma sociedade. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, procurou legitimar o seu catálogo de direitos fazendo apelo a ideais e valores tão consensuais quanto possível, partilhados pelas principais visões do mundo, religiosas e filosóficas, à escala global.
Embora muitos continuem a dar primazia aos aspetos físicos, materiais e económicos – por alguns considerados infraestruturais da existência – e deles deduzam as suas conceções morais, os seus direitos, os seus interesses e mesmo a sua identidade, outros valorizam mais os aspetos espirituais, ideais e morais e definem-se por referência a eles. A decisão judicial há pouco anunciada revela que é um erro subestimar estes últimos aspetos, nomeadamente procurando, em termos dualistas e maniqueístas, afastar a religião da esfera pública. O caso Dobbs v. JWHO demonstra, além do mais, que as confissões religiosas podem não ser do mundo, mas estão no mundo, contribuindo legitimamente para a formação da opinião pública, da vontade política e mesmo da decisão jurídica.
Os valores manifestam-se em maior ou menor medida no processo político democrático. Assim sucede quando os cidadãos escolhem, direta ou indiretamente, os seus representantes constituintes, legislativos, executivos e judiciais e estes ratificam convenções internacionais e adotam constituições, leis, regulamentos, atos administrativos ou sentenças judiciais que não deixarão de refletir esses valores. A política pode não ser tudo, mas é muito importante. Através dela os valores condensam-se em normas jurídicas adequadas à dinâmica das circunstâncias. Os instrumentos jurídicos nunca são inteiramente neutros do ponto de vista religioso, ideológico ou moral, embora se distingam destas grandezas. A separação entre as confissões religiosas e o Estado não impede os crentes de viverem em sociedade, exprimirem opiniões, exercerem profissões, votarem em eleições e desempenharem cargos públicos de acordo e dentro dos limites da sua consciência. Para fazerem valer as suas posições morais e ideológicas, os cidadãos podem e devem participar e votar no processo político.
As questões sociais nunca são definitivamente resolvidas com uma nova convenção internacional, uma constituição, uma lei, um ato administrativo ou uma sentença judicial. Todos esses instrumentos serão alterados, rescindidos ou revogados, mais tarde ou mais cedo. A sua interpretação pode mudar. Não estando escrito nas estrelas, o sentido dos conceitos jurídicos é afetado pela dialética entre conceções ideológicas no movimento pendular do espírito do tempo. A história não tem um sentido definido. Estar ou não estar do lado da história não significa nada, porque a história não tem lados. Ela segue simplesmente o caudal imposto pelo antagonismo entre conceções, que pode durar décadas, séculos ou milénios, ficando às vezes a dúvida sobre se são as pessoas que têm ideias ou se são as ideias que têm pessoas. Aquelas parecem ser, até, mais influentes do que os tribunais mais poderosos dos Estados maisfortes.
As chamadas questões fraturantes podem alastrar, fraturar e destroçar. Elas conseguem destruir o tecido social e por em causa a existência de Estados, confederações de Estados e alianças militares. A América vive num clima de guerra civil fria que pode aquecer rapidamente, com consequências para a Europa e para o mundo. A invasão da Ucrânia não é o único conflito que nos deve preocupar. O confronto entre representações do mundo, da vida e do ser humano afeta hoje os Estados Unidos, a União Europeia, a Rússia, a China, a Índia ou o Brasil. O recurso a artilharia conceitual pesada, de demonização e estigmatização dos adversários políticos e ideológicos, só vai polarizar perspetivas, radicalizar posições e agravar a situação. Em vez de uma escolha cósmica e épica entre a vida e o bem e a morte e o mal, o que está em causa, na maior parte dos casos que nos dizem mais diretamente respeito, são divergências razoáveis entre cidadãos iguais, igualmente preocupados com a vida, dignidade, liberdade, solidariedade e justiça, mas com opiniões diferentes sobre a melhor maneira de promover e proteger esses valores e sanar eventuais conflitos entre eles. Nada que o diálogo político informado, fraterno e sereno, seguido de deliberação democrática conciliatória e compromissória não possam e não devam ao menos tentar resolver.