Margarida Bonetti. O caso sombrio da mulher da casa abandonada

Uma casa abandonada num dos bairros mais ricos de São Paulo. Uma mulher que há anos mora nessa casa e que disfarça o rosto com pomada branca. Uma história oculta atrás dessa camada de creme. Nas últimas semanas, a história de Margarida Bonetti tornou-se viral nas redes sociais. Aquela que se pensava ser uma mulher maluca e marginalizada, é…

Uma casa abandonada é o maior cliché que existe, a alegoria mais óbvia de filme de terror e, esta, não é exceção. Tudo começou na véspera de Natal, de 2021, quando o jornalista da Folha de São Paulo, Chico Felitti, passeava em Higienópolis, um dos bairros mais ricos de São Paulo. Numa esquina, uma mulher tentava impedir a prefeitura de derrubar uma árvore. Segundo a senhora, em conversa com o jornalista, “a derrubada da árvore era um esquema fraudulento da prefeitura, pois as leis ambientais não o permitiam”. Depois disso, os dois mantiveram contacto. Isto poderia ser uma situação normal. Contudo, num outro dia, ao passar nessa mesma rua – por uma casa abandonada no meio de grandes e luxuosos prédios – um rosto brilhante “que parecia uma lua que refletia a luz dos postes”, chamou a atenção do jornalista. Ao aproximar-se do terreno, Chico percebeu que se tratava da cara da mesma mulher que havia falado com ele a propósito da situação ambiental e com quem já havia trocado alguns telefonemas: Mari, como fazia questão de ser chamada. 

Felitti depressa percebeu que “havia algo de errado”. Uma casa enorme abandonada num dos bairros mais ricos de São Paulo? Uma mulher que mora nela? Um rosto cheio de pomada? Seria uma mulher marginalizada pelos vizinhos por ser “excêntrica”? Teria algum problema mental? Teria sido abandonada pela família? O jornalista decidiu investigar e não foi preciso muito até perceber que todos os caminhos iam dar a uma só história e a um nome diferente daquele que conhecera: por detrás dessa figura misteriosa que vive numa mansão sem rede de esgoto, dois cães e falhas nas telhas, esconde-se uma mulher que está fugida ao FBI há mais de 20 anos, de seu nome verdadeiro Margarida Bonetti, neta do Barão de Bocaina, e pertencente a uma das mais ricas famílias paulistas. Porquê? Por ter sido acusada de ter cometido “um crime hediondo” nos EUA, numa pequena cidade, Gaithersburg, onde manteve juntamente com o seu marido, Renê Bonetti, uma empregada doméstica em cárcere privado durante vários anos. Ao perceber isso, o jornalista decidiu contar a sua história no podcast A Mulher da Casa Abandonada que já conta com cinco episódios lançados semanalmente, e que se tornou completamente viral, não só no país, como em várias partes do mundo. O trabalho é considerado “uma reportagem baseada em registos de um caso de notório caso de interesse público” e, a investigação de seis meses, para além de passar por essa praça de São Paulo, “viaja” a um subúrbio de Washington e ainda a uma empresa que faz foguetes e satélites para a NASA, onde trabalha atualmente o ex-marido de Mari. 

A investigação “Uma mansão, uma casa de tijolos que atravessa um quarteirão inteiro (…) Além do imóvel – que tem mais de 20 divisões – a casa abandonada tem ainda um quintal do tamanho de um campo de futebol, cheio de abacateiros. É um dos últimos terrenos sem prédios num bairro dominado por edifícios, onde um apartamento de dois quartos custa dois milhões de reais”, começa por descrever Chico Felitti, no primeiro episódio chamado A Mulher.

Segundo o mesmo, “dominado pelo espírito de vendedor de imóveis que paira em si”, interrogou-se: “Como é que ainda não construíram um prédio aqui?”. E foi a partir daí que nasceu a investigação. Nesse episódio, Chico apresenta-nos Mari, mostrando gravações das conversas que foi tento com a mesma, até esta descobrir que ele se tratava de um jornalista. Nas gravações ouvem-se também os relatos de alguns vizinhos que a descrevem como “bruxa” e que admitem que há muitos anos que sabiam a verdadeira história por trás das portas gastas pelo tempo e que, por isso, nunca se aproximavam dela. Exceto uma pessoa: Felipe, um senhor que trata de varrer as ruas do bairro e ajuda os moradores em qualquer tipo de trabalho. Esse é o único em todo o Higienópolis que, apesar de saber a história, nunca deixou de se preocupar com a senhora. “Fico com pena. Quando passo, ficamos a falar. Ela gosta muito de plantas e eu também”, afirma o trabalhador. Além disso, Felipe admite ao jornalista que foi a única pessoa a quem Margarida deu autorização para entrar no terreno. “Fui apenas ao quintal, que parece abandonado. Pediu-me que lhe cortasse uma árvore. Ela é muito desconfiada, mas parece gostar de mim. Dou-lhe conversa. Fico com pena de ser uma pessoa tão sozinha”, lamentou o chamado “zelador” que alertou ainda para a situação degradada da mansão. “Tem grandes buracos no telhado. Um dia percebi que ela estava a meter guarda-chuvas empilhados para tentar que a água não passasse. Nas alturas de grandes chuvadas, vemo-la com um balde a retirar a água das divisões”, contou. Felipe revelou ainda que certo dia a mulher lhe explicou que a pomada na cara seria por conta de um problema de pele que tinha. 

Margarida e Renê Bonetti foram casados e moraram juntos primeiramente nesta mesma casa, em São Paulo, conta o segundo episódio, A Casa. Sendo engenheiro, Bonetti recebeu uma proposta de trabalho nos EUA e acabou por se mudar, juntamente com a sua esposa, em 1979. Antes disso e, por serem da alta sociedade, a empresa que o contratou, autorizou que o casal levasse um(a) funcionário(a) para ajudar nas lides domésticas e foi isso que aconteceu. Uma brasileira analfabeta – que até hoje mantém a sua identidade escondida – acabou por ser levada por eles, sem saber o pesadelo que viveria nos anos seguintes. 

Os crimes Segundo o jornal brasileiro O Liberal, Margarida Bonetti e o seu marido à época, aplicavam vários castigos à vítima como: obrigá-la a dormir no porão da casa, não lhe pagar um salário obrigando-a a trabalhar mais de 12 horas por dia, agrediam-na quando alguma coisa não estava do seu agrado, atiravam-lhe água quente para a cara, não permitiam que se lavasse, obrigavam-na a lavar os três carros da casa regularmente, trancavam o frigorífico para impedir que se alimentasse e negavam-lhe tratamento médico depois desta levar tanta tarei que ficava com ossos fraturados, ou grandes feridas. Quando o crime foi descoberto, em 2001, por uma vizinha do casal que acabou por denunciar o caso e ajudar a senhora brasileira, para não ser condenada pelo crime, Margarida regressou para o Brasil.

Por sua vez, segundo O Povo, Renê — brasileiro naturalizado como americano — “foi condenado a seis anos e meio de prisão nos EUA e teve que pagar indemnização de 100 mil dólares ao estado norte-americano e 110 mil à vítima”.

De acordo com Chico Felitti, no terceiro episódio do podcast, ao qual deu o nome de Uma Rua em Silêncio – onde se deslocou aos EUA, para obter mais informações sobre o processo – as últimas informações sobre Renê Bonetti davam conta de que este estava a trabalhar para uma empresa de tecnologia norte-americana, que presta serviços à NASA. 

O jornalista conta que ao visitar a cidade, os moradores “evitaram dar informações sobre a situação”, alegando “não saberem de nada. Exceto a tal cidadã que inclusive confirmou ter ajudado a tal pessoa a fugir da casa onde se encontrava em cativeiro. Foi numa localidade perto de Gaithersburg que o jornalista conseguiu ter acesso a todo o processo, de mais de 300 páginas. 

No quarto episódio, Uma Mulher e um Homem Livres, para além de continuar a investigar Renê – quinze anos depois deste ter saído da cadeia – o jornalista da Folha decidiu também descobrir mais sobre a pessoa que foi explorada por Margarida Bonetti, que hoje vive protegida pelo Governo americano e que lhe permitiu divulgar algumas partes da conversa que teve consigo. Para a brasileira, “o passado ficou no passado” e hoje tenta ser “uma mulher feliz, sem pensar nisso”. “Estou bem!”, afirma a senhora. 

Mas porque é que Margarida nunca foi presa? Segundo O Liberal, de acordo com as leis brasileiras, “a justiça não pode investigar os seus cidadãos para serem julgados noutros países”. Ou seja, Mari não podia ser entregue pela justiça brasileira ao FBI, para que respondesse pelos seus crimes em território norte americano. Já o caso do marido, era diferente, por se ter naturalizado como cidadão norte-americano. Apesar de ser procurada pelo FBI e de se ter afastado do jornalista e deixado de atender o telemóvel, Chico afirma que a mulher sempre esteve ciente de que o seu caso estava a ser tratado no podcast e inclusive, autorizou o jornalista a publicar a história. Além disso Felitti conseguiu chegar até alguns familiares que preferiram manter-se distantes da situação. No entanto, há quem afirme que, durante alguns anos, já depois de regressar dos EUA, Margarida viveu na mansão com a sua mãe até esta falecer. 

Após o trabalho de investigação que está publicado em diversas plataformas digitais como Youtube, Spotify ou Apple Podcast ter viralizado, a casa onde Mari mora, tornou-se numa espécie de “ponto turístico”. Muitas pessoas começaram a deslocar-se até ao local, a tirar fotografias, filmar, ameaçar Margarida, grafitar os muros, etc. Já existem mesmo páginas criadas por fãs, que reúnem fotos e informações sobre a sua vida. Por isso, explica o jornalista, “a mulher nunca mais foi vista”. Pensa-se que Margarida Bonetti tenho fugido, tendo deixado para trás as suas duas cadelas. Os animais foram resgatados no fim de semana passado pela ONG brasileira Instituto Luísa Mell.

Outros casos Mas esta não é uma história isolada. O quinto episódio lançado por Chico, chama-se Outras tantas Mulheres, e nele o jornalista retrata outros casos conhecidos no Brasil. De acordo com o Diário Carioca, este caso “revela a ponta do iceberg de uma realidade ainda existente no país”. Em 19 anos, já foram resgatadas 2 330 mulheres que se encontravam numa situação semelhante á da pobre empregada doméstica que um dia embracou para os EUA. “Desde 1995, foram resgatadas 57,6 mil pessoas da escravidão contemporânea no país. Os dados, que são da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Previdência, evidenciam que, mais do que simplesmente carregar a herança de ser o último país do Ocidente a abolir a escravidão, o Brasil continua a produzir estas práticas quotidianamente”, escreve a publicação. 

De acordo com o jornal brasileiro, a partir de 2003, “o Estado passou a pagar seguro-desemprego para as pessoas resgatadas e, assim, criou-se uma base de dados mais robusta”. Desde então, 2 330 mulheres foram encontradas a trabalhar em condições “análogas à escravidão”. “Destas, 61% declararam ser negras, 36% nasceram no Nordeste e 56% eram analfabetas ou tinham menos que cinco anos de estudo”, detalha o Diário Carioca.