Aos 85 anos, Maurice estava muito confuso. Conta o seu médico particular que acordava sobressaltado e perguntava: «Onde é o controlo? Onde fica o controlo?». Era como se ainda continuasse sentado no selim da sua bicicleta a percorrer quilómetros e quilómetros pelas estradas de França. Muitas vezes saía de casa, sem ninguém dar por ele, e dirigia-se à esquadra da polícia de Lens, onde vivia. Chegando lá, perguntava ao agente de serviço: «O controlo é aqui?». Depois, com todo o carinho, havia alguém que o devolvia à procedência. Ficava sentado, a olhar pela janela, o olhar perdido no horizonte, ele que fora um vencedor de horizontes.
Maurice Garin foi vítima de uma daquelas ironias muito comuns na natureza: nasceu num lugar sem horizontes, o Vale de Aosta. Quando era menino, em seu redor só existiam os picos brancos dos Alpes. Arvier não é um lugar propriamente fácil para se nascer, ainda por cima no ano de 1871. A menos que se goste muito de vinho e se opte por ficar lá até à idade não para o beber, porque sopas de cavalo cansado a gente do campo enfiava pelas goelas dos seus petizes sem cerimónias, mas pelo menos até conseguir apreciá-lo condignamente. Afinal, pelas redondezas abundam as plantações de castas como Dolcetto, Gamay, Neyret ou Pinot Noir. Começou a trabalhar muito cedo. Era de uma família que não tinha para gastos. Foi limpa-chaminés em Reims, aí pelos seus 15 anos, para onde a mãe, Teresa Ozello, uma italiana, se escapara entretanto, para tentar uma vida um pouco mais longe das montanhas e sobretudo da morte já que deixara para trás o cadáver do marido, Maurice-Clément, e do filho mais velho, Joseph-Isidore. Maurice tinha muito para doer. E doeu-lhe até morrer.
Os dois irmãos mais velhos sobrevivos de Maurice, César e Ambroise, gostavam de bicicletas. Instalaram-se em Roubaix e abriram uma loja. Farto de passar os dias sujo de fuligem, Maurice seguiu-os até Roubaix. Não tardariam a ser, os três, ciclistas profissionais.
A primeira bicicleta de competição de Maurice pesava a ninharia de 16kg mais os seus pneus de borracha e respetivas câmaras de ar. Ainda como amador, pegou nela e pôs-se a caminho de Avesnes-sur-Helpes, a cerca de 25km de sua casa, para participar numa prova para o qual o tinham desafiado. Enfim, uma chatice. Chegou lá e os regulamentos só permitiam que corressem profissionais. Manhoso, ficou quedo. Deixou partir toda a gente e, pela calada, foi atrás, na perseguição das vedetas. Tal e qual acontece nos filmes, passou-os a todos e terminou em primeiro. A populaça que se juntou na linha de chegada ficou fascinada com o atrevimento do moço e levou-o em ombros. Já os organizadores não estiveram para palhaçadas e recusaram-se terminantemente a pagar-lhe o prémio de vitória de 150 francos. Maurice encolheu os ombros: tinha muito para ganhar daí para diante. O público, esse, não suportou a injustiça: fez uma vaquinha e angariou cerca de 300 francos. Campeão é campeão e merece ser tratado como tal.
No dia 1 de julho de 1903, à saída da primeira etapa da primeira edição da Volta à França, Maurice Garin estava no grupo dos favoritos. E ganhou! Não era mais nenhum saloio dos montes como lhe chamavam ao princípio. Ganhou logo no primeiro controlo, em Lyon, 467km depois da partida em Montgeron, nos arredores de Paris, mesmo em frente do albergue Reveil Matin, e ganhou no fim. Na altura, o intendente da capital francesa, o inefável Louis Lépine, um tipo francamente organizado e pouco dado a rodas pedaleiras, não permitia que os ciclistas rodassem nas ruas da sua cidade. O prémio de vitória por etapa variava entre 50 e 1500 francos. Os 14 primeiros a cortarem a reta da meta ganhavam desde 3000 para o primeiro até 25 para o último. Os restantes recebiam cinco francos por cada dia de corrida. 21 chegaram ao fim das seis etapas. 38 desistiram pelo caminho.
Toda a gente estava convencida de que o maior adversário de Maurice iria ser Hippolyte Aucouturier, um fulano que concitava a simpatia geral. Chamavam-lhe Le Terrible. Era um pândego. E um bocado fanfarrão. Queria era farra e viva lá o seu compadre. Não se coibiu de, nos dias que antecederam o início da prova, andar de festarola em festarola, escorropichando os seus copázios de tinto. Já Maurice, que era da terra do tinto mas preferia a cerveja, preparou-se com rigor. Por muito que tivesse lucrado 150 euros acima do prémio em Avesnes-sur-Helpes continuava com a lição entalada na garganta. Por falar em garganta, Hippolyte desistiu logo ao fim de 320km. Alguém lhe perguntou: «Que se passa?» E ele, a custo: «Estou bem. Da cabeça e das pernas. mas o estômago, meu Deus!». Pudera!
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