Tejo já se atravessa a pé em Santarém

Pescadores sem peixe, agricultores sem água, barqueiros que se veem obrigados a alterar os trajetos, atletas de canoagem que precisam de fugir às pedras. O caudal do Tejo nunca esteve tão baixo, há zonas onde é possível atravessá-lo a pé. Estaremos a assistir à ‘morte’ do maior rio português?

Rio Tejo, o rio mais extenso da Península Ibérica. O rio que todos os portugueses conhecem e de que muito se orgulham. Alexandre O’Neil considerava-o «o curso do tempo já vivido»; escrevia Alberto Caeiro que «pelo Tejo vai-se para o mundo». Pela sua dimensão e singularidade, serviu de tema para os mais bonitos poemas, as mais sentidas canções. É casa de alguns e pão de outros, nele correm intermináveis histórias… No entanto, com o passar dos anos, o cenário tem-se transformado e, de ano para ano, ouve-se cada vez mais falar da ‘morte’ deste ícone nacional. Pescadores que não pescam, agricultores que não cultivam, barqueiros que se veem obrigados a alterar as suas travessias, desportistas que têm de se contentar com pouco. Pior: com a seca, veio a possibilidade, em algumas zonas, de o atravessar a pé.

São 10h30 da manhã e o sol já queima. A viagem de Lisboa até Santarém é curta e a beleza dos extensos campos de milho e girassóis dão-nos a impressão de estar no cenário de um filme. O Jardim das Portas do Sol é o local de onde melhor se vê o rio. «Bom dia! Muito bom dia! Que paisagem maravilhosa, não é? Vão sair daí umas belas fotografias!», ouve-se ao longe. Mas algo parece errado na paisagem. Ao invés de um espaço coberto de água, ao longe, veem-se grandes «ilhas» que se misturam criando inúmeros areais e possibilitando a travessia a pé de um lado para o outro.

Suspeita-se que o caudal estará a ser cortado algures em Espanha, até porque, como revelou a CNN Portugal esta semana, nalgumas zonas do percurso no país vizinho, as águas do Tejo encontram-se completamente verdes, o que indicia a falta de circulação. Possivelmente, nem sequer o caudal mínimo ecológico está a ser respeitado.

‘Isto não é o Tejo. É um regato’

Ao descer até às Caneiras, um silêncio surpreende, dando a impressão de que nos encontramos numa zona desabitada. Impressão que desaparece ao observar as roupas estendidas nos pequenos quintais improvisados das antigas cabanas de pescadores, virados para o rio. De que maneira a falta de caudal afeta as pessoas que aqui habitam ou trabalham? De repente, ouve-se o barulho de uma bicicleta.

«Se tenho notado alguma diferença no rio desde que aqui estou? Tenho notado muita!», começa por lamentar Manuel Duarte, morador das Caneiras há 50 anos. O caudal da água, garante, «mudou muitíssimo»: «Isto não é o rio Tejo. É outra coisa qualquer, uma parecença talvez… Só quando as marés aqui chegam é que o vemos. Agora é um regato!», exclama o residente de 70 anos, que diz não ter ainda percebido bem o porquê do «fenómeno».

«Não sei se isso passa pelo protocolo com os espanhóis que nos têm de dar um x de água de x em x tempo. Não sei se passa pelas alterações climáticas… Aqui há uns anos tínhamos as estações do ano praticamente certinhas, a primavera era um encanto, desabrochavam as flores, o inverno era frio, chovia quando tinha de chover, o verão quente… Temos falta de chuva! O rio no inverno chegava cá acima, quando não galgava… Ultimamente não», afirma ao Nascer do Sol. «Quando os espanhóis largam a água», acrescenta, os moradores utilizam a expressão: «Venha a água de cima!», em jeito de festejo. 

E quem sofre as consequências? Manuel Duarte dá uma pequena gargalhada que parece esconder nervosismo: «Toda a gente sofre com isto! Apesar de já não serem muitas, ainda existem pessoas que se dedicam à agricultura e à pesca. Então a agricultura sofre imenso! Eu, por exemplo, tenho ali uma horta, rego a partir do furo. Não tenho água suficiente… Para as pessoas que realmente se dedicam a isso, não sei como será. Se não chover bem este inverno, tenho muitas dúvidas que haja água suficiente. Não sei o que é que essas pessoas farão. Saem daqui toneladas e toneladas de tomate, milho… Não será fácil continuarem a cultivar este tipo de produtos», antevê. A utilização de furos tem aumentado de forma notória.

O morador aponta em direção a uma construção. Era um restaurante, fechou há dois anos. «Fazia umas iguarias… Vinha a lampreia diretamente do mar para os pratos! Acabou por fechar. Não consigo precisar bem porquê, mas a verdade é que não há peixe. Com o caudal assim, não há pescador que consiga pegar os peixes que há. Só à cana, para consumo caseiro». 

Caneiras: de nove produtores resta um

Encontramo-nos agora no recinto onde, daqui a umas semanas, se realizará um arraial. No portão, uma carrinha alaranjada faz sinal. Dentro do veículo, a agricultora Vera Lagoa, de 44 anos, cumprimenta o senhor Manuel. «Eu não moro aqui, mas é como se cá tivesse nascido e crescido. Está tudo muito diferente! Isto com a seca o rio vai péssimo. Com a falta de caudal vai ser muito complicado continuar a lutar. É frustrante mesmo», diz ao Nascer do Sol.

Só com furos de 200 ou 300 metros se consegue obter água, embora fosse suposto nessa zona «haver água para regar todo o ano» aos 90 metros ou até menos: «Cultivo tomate e recentemente vi-me obrigada a fazer um furo de 217 metros. Não é brincadeira». Os seus colegas que «têm pouca agricultura», passam o tempo a fazer buracos para tentarem captar água. «Está impossível! O valor normal de um furo destes é 30 a 40 mil euros, não se gasta menos… Só o furo são 25 mil euros, fora a instalação da bomba, a luz, etc. Estou muito desgastada, muito farta», confessa.

«Trabalharmos noite e dia e chegarmos ao fim sem ter lucros? Cada ano que passa os fatores de produção ficam cada vez mais elevados. Estive ali com técnicos, porque vou começar a apanhar o tomate para a semana, e os custos estão elevadíssimos. Nós não conseguimos. Onde vamos buscar o dinheiro se não tivermos boas produções? É uma vida muito ingrata! Não aconselho a ninguém escolher ser agricultor neste momento». A agricultora lembra que há três anos havia pelo menos nove produtores na zona. Neste momento, só resta ela.

«Fico pelo gosto e porque penso: ‘Tenho 44 anos, o que é que eu vou fazer?’. Se calhar começar a cultivar milho, que não desgasta tanto… Se passarmos outro ano de seca, não sei como será. Nem vale a pena fazer agricultura nenhuma. Há meia dúzia de anos queixávamo-nos: ‘Vem aí a cheia! Vem aí a cheia!’. Agora? É um faz falta!».

Mas nem toda a gente parece partilhar desta visão. Num pequeno beco, no meio de duas cabanas de pescadores, encontram-se uma senhora e dois senhores, sentados à sombra – os três moradores das Caneiras. «O que é que quer que lhe diga? O rio sempre esteve assim. Há anos que isto acontece, não é novidade nenhuma!», afirma um dos senhores, que prefere manter o anonimato. «Quando era miúdo, brincava sempre no rio com o pessoal da minha idade… Passava o rio a pé tal como hoje é possível, aqui neste local! Não percebo a novidade», contrapõe. Diz que «com os pescadores o cenário era igual». «Antigamente já existiam zonas onde os barcos não conseguiam passar. É assim há 50 anos ou mais. As pessoas falam muito, mas isto está tudo relacionado com negócios e política!», justifica.

Alpiarça: falta de produção e de compradores 

A sensivelmente 25 minutos de carro, encontra-se a vila de Alpiarça. O calor começa a escaldar e veem-se cada vez menos pessoas na rua. À beira da estrada, perto da chamada Vala Real de Alpiarça, um conjunto de reboques repletos de melões e melancias salta à vista. «Não choveu! Nem em Espanha nem aqui, é isto que temos», queixa-se Mário, morador da vila e ex-agricultor de 67 anos. Há 30 anos, diz-nos, também houve um ano de seca.

Na época, Mário arregaçava as calças pelo joelho e atravessava o Tejo a pé: «Agora, se calhar, nem é preciso arregaçar as calças em algumas zonas! A água nem aos joelhos deve chegar. Só se vê areia», descreve, relembrando ainda a quantidade de peixe que se tem vindo a perder. «Tínhamos tantas fataças [um peixe típico da região]. Apanhavam-nas de manhã e comíamos à hora de almoço. Olhávamos para o rio e eram cardumes e cardumes. Agora? Olhamos lá para baixo e nem um peixe vemos».

Além de seco, o rio também está poluído. «Há cinquenta anos atrás a malta vinha para aqui tomar banho. Pego do Carrito é como se chama. Lembro-me de mergulhar, de aprender a nadar neste rio. Mergulhávamos, abríamos os olhos e via-se tudo! Areia branquinha. Agora mandamos para lá um salto, ficamos encalhados», afirma. 

Foi precisamente isso que aconteceu recentemente a António Bernardo, também agricultor e vendedor de melões e melancias, de 73 anos. «A semana passada tive de entrar dentro da vala e fiquei preso pela cintura. Para sair de lá o meu genro teve de me puxar com um pau. Tirava um pé, ficava lá outro», relata junto do reboque onde transporta e expõe os produtos, juntamente com a sua esposa, Maria Joaquina.

De acordo com a vendedora, antigamente as mulheres costumavam deslocar-se até ao local para lavar a roupa. «Agora, se viessem, ia mais suja do que limpa», brinca a senhora de 62 anos. O casal começa a cultivar em abril e, nesta época, todos os anos, este é o lugar escolhido para a venda. No entanto, o fim parece cada vez mais próximo. «A produção está fraca. Vamos vendendo qualquer coisinha, mas sempre pouco. Como podem ver não aparece aqui ninguém… A agricultura está cada vez pior. Tudo aumentou. Nós continuamos a vender o melão ao mesmo preço dos outros anos… Não dá para a despesa! Não dá», lamenta, enquanto Maria Joaquina – com aflição no olhar – revela que este «tem sido um ano péssimo».

«Não sabemos como será daqui para a frente. Sem água as árvores começam a descair e não criam a fruta. A melancia fica preta, toda chapada do sol. A gente não tem água para regar… Ninguém compra. Às vezes acaba mesmo por ficar na terra. Se calhar para o ano já não vamos fazer. Para ter prejuízo, mais vale estarmos quietos! Hoje nem para o almoço ganhámos», suspira. Há três anos, o espaço estava todo cheio de reboques de melão. Agora, está «quase deserto», lamenta Mário. «Tudo o que vê aqui está para vender. Serve de sombra!».

Castelo de Almourol: as travessias de barco

A quase 38 quilómetros, erguido num afloramento de granito 18 metros acima do nível das águas, numa pequena ilha no médio curso do rio Tejo, encontra-se o Castelo de Almourol – um lugar de lendas e conflitos e uma das principais atrações medievais de Portugal. Muitos visitam-no não só por ter uma vista de «cortar a respiração», mas também pela sua história – o castelo é um testemunho direto da presença da mítica Ordem dos Templários. Um grupo de pessoas aguarda a chegada do barco que lhes dará acesso ao monumento.

Paulo Lopes, de 51 anos, é sócio gerente da Tritejo, empresa responsável pelos passeios ao longo do rio há três anos, principalmente associados ao castelo, que constitui «o epicentro do negócio». Além disso, a Tritejo assegura a travessia entre as margens, mais precisamente entre as aldeias de Tancos e do Arrepiado. «Essa é mais a nossa missão social, não é tanto um negócio! As pessoas pagam 50 cêntimos para irem de uma margem à outra», conta o barqueiro ao Nascer do Sol.

Ao que parece, os passeios de barco já não têm o mesmo encanto. «A cada década o rio perde cerca de 60 a 80 centímetros de água. Esta é a nossa referência. Porquê? Existem alguns embarcadouros, ou seja, pontos que outrora serviam para as pessoas entrarem e saírem, que hoje são visíveis a nu, estão rodeados ou de areias, areais ou nitidamente sem acesso, porque o rio desceu e eles já não têm finalidade», explica Paulo Lopes, acrescentando que todos os aqueles que foram projetos feitos principalmente em finais dos anos 80 de locais para as pessoas entrarem e saírem do rio, quer em Vila Nova da Barquinha, quer em Almourol, Tancos, Constância, «foram dizimados da sua capacidade».

Só de «medirmos a olho nu», continua, é possível dizer que, em 10 ou 15 anos, se perdeu «um metro e meio de água». «É muito! Estamos aqui com uma enorme incapacidade. O rio está muito vazio», afirma. Agora, ao contrário do que acontecia há vários anos, há uma «grande preocupação no circuito daquela que é a passagem sobre o rio». «Temos de ter muito cuidado nas faixas de utilização. Não podemos navegar nem acima do Castelo de Almourol, nem abaixo da Vila Nova da Barquinha. Estamos limitados, já tivemos de eliminar ofertas turísticas. Já não conseguimos passar em alguns sítios, não tem profundidade nenhuma», alerta o responsável.

Outra das grandes preocupações de Paulo Lopes é «a capacidade de transformação do próprio ecossistema».

«Aparecem algas, vegetação que não era característica do fundo do rio… Por exemplo, no início deste ano, apareceu uma praga de ervas que infestou o rio e nos colocou numa grande dificuldade de navegação», lembra, contando que «esses ‘juncos’ evoluíram de uma forma assustadora e enrolavam-se nas hélices». Por conta das ervas, os barqueiros tiveram «graves problemas nos motores»: «Isto acontece por causa do baixo caudal. As águas estão cada vez mais baixas, as temperaturas são cada vez mais altas e o ecossistema começa a ter a capacidade de criar estas novas espécies de plantas».

Por isso, de acordo com o gerente da Tritejo, mais importante do que a situação do caudal, é a situação da qualidade da água. «Estamos a receber um fenómeno que está a assaltar a primeira barreira daquela que é considerada a entrada do rio Tejo, a barragem de Alcântara. Todo o rio está a ficar com as ervas. Deixamos de ver a água e só vemos verde», sublinha, apontando ainda o dedo ao «abuso relativamente às barragens».

Paulo Lopes faz também questão de sublinhar que, no início do ano de 2022, «assistimos a um assalto abismal relativamente a tudo aquilo que são recursos, não só do Tejo como também do rio Zêzere, que em janeiro e fevereiro também encontrou caudais que nunca tinham sido vistos». O barqueiro refere-se à «ganância da produção, da economia, de tudo o que é a força da produção energética».

«O mesmo aconteceu em Alcântara. Nos meses de janeiro e fevereiro esteve com 48 %. É a maior albufeira da Península Ibérica, quase maior do que o Alqueva. Não se baixa esses níveis porque a natureza abriu a torneira ou fechou. O homem é que é o causador disso», denuncia. O rio Tejo tem 11 barragens ao longo do seu curso. A sua maior preocupação, é «que aconteça o que aconteceu em 2017», que «foi o pior ano até agora».

«Nesse ano, assistimos à morte do rio Tejo. Chamamos-lhe mesmo morte. E porque é que isso aconteceu? As barragens não tinham a capacidade de libertar água, por isso não havia um caudal contínuo. E não nos esqueçamos das altas temperaturas e do estagnar das águas», alerta.

Recorda que à data de hoje, a barragem de Castelo de Bode está com 70 %, ou seja, «ainda limitada por aquilo que é a obrigação do Governo Português desde fevereiro de 2022 relativamente à capacidade de emissão do caudal». «Foi dada a ordem relativamente a sua inibição, a tudo o que é a reposição dos caudais. Para nós, onde estamos, o Castelo de Bode é vital. A nossa sobrevivência e o bem estar do rio Tejo advém daí», assegura.

Canoagem: um rio de pedras 

De regresso a Santarém, o dia termina no Clube de Canoagem, mesmo à beira-rio. Às 18h, o calor ainda aperta e as crianças brincam à porta do armazém onde são guardadas as canoas, enquanto aguardam a hora do treino. Também aqui, a falta de caudal acaba por interferir na atividade. Por norma, explica Carlos – treinador estagiário de 21 anos – o clube tem diariamente «miúdos dentro de água».

Acontece que «só existem cerca de 700 metros de água para remar», quando se podia ter quilómetros e quilómetros… «É triste, mas é o que temos neste momento. Eu faço canoagem há 12 anos, primeiro fiz em Coruche e há oito anos aqui. Primeiro como atleta, no último ano como treinador. Antigamente tínhamos medo de ir para o Tejo porque tinha muita água, agora nenhum miúdo tem medo porque consegue atravessá-lo a pé. Se em oito anos se transformou nisto, como é que se pode vir a tornar daqui a uns anos?», interroga o atleta.

O jovem aponta para ilhas de pedras formadas no rio: «O espaço que temos para treinar é este. Pedras e pedras. Este é o nosso cais de entrada. O máximo que andamos é até à árvore, depois já não há água. Temos de andar a procurar. Daqui até às pedras, fico com água até à cintura, depois é capaz de me ficar até ao pescoço. Ainda ontem o fiz», admite, revelando que há pouco tempo partiu o seu barco todo «porque o Tejo estava baixo».

«Eu não sabia que haviam pedras ali numa zona, debaixo de água… Ouvi um estrondo, tinha o barco partido. É a corrente que as traz. Cada vez que o rio enche, traz mais, começam a amontoar-se e fica assim. Quando chegamos aqui e as vemos debaixo de água, ficamos todos contentes. É sinal que temos água suficiente para remar», explica, dizendo ainda que o que fazem quando precisam mesmo de treinar provas de velocidade é ir para a barragem de Alpiarça, «que cada vez está pior», ou para a Casa Cadaval, «onde existe água à patada».

Para si, uma das soluções seria construir uma barragem. Segundo o treinador, «bastava um metro ou dois de altura». «Temos de nos contentar com o que há, ao caudal quando as barragens mais acima mandam, ou quando não mandam, ao que há», lamenta. 

O Nascer do Sol contactou a Câmara Municipal com o objetivo de perceber se estão a ser tomadas medidas para atenuar a situação. Contudo, não obteve resposta.