Olho por olho, dente por dente

Em Drogueville viviam dezenas de toxicodependentes em tendas de campismo, barracas de cartão ou encostados a uma parede. Recebia diariamente a visita de centenas de outros drogados, clientes em busca de prostitutas baratas, pequenos traficantes e gangsters encarregados de cobrar dívidas ou liquidar quem não as pagava…

por João Cerqueira

Chamavam-lhe Drogueville.  Situava-se nos arredores de Tiers num antigo armazém de madeiras abandonado depois da Perestroika. Lá, comprava-se e vendia-se todo o tipo de drogas, ofereciam-se serviços sexuais e eram espancados, e por vezes executados, aqueles que não pagavam as dívidas aos traficantes. Era uma construção de tijolo com um telhado de zinco a seis metros de altura e com uma área de quarenta metros de comprimento por vinte de largura. O chão era de cimento, as paredes cegas e a única entrada de luz resultava do arrombamento de um portão lateral. No Verão, as temperaturas podiam atingir os trinta graus e no Inverno descer abaixo de zero.

Em Drogueville viviam dezenas de toxicodependentes em tendas de campismo, barracas de cartão ou encostados a uma parede. Recebia diariamente a visita de centenas de outros drogados, clientes em busca de prostitutas baratas, pequenos traficantes e gangsters encarregados de cobrar dívidas ou liquidar quem não as pagava. O espaço fora também colonizado por ratos, baratas e aranhas. Quem entrasse no recinto tinha de caminhar com cuidado para não pisar os corpos deitados no chão, as seringas e os preservativos perdidos, as poças de vomitado, o sangue e os excrementos dispersos por todo o lado. Apesar das fogueiras que acendiam no Inverno e de um cheiro a madeira que nunca desaparecia, o fedor da imundice nauseava. O barulho era permanente devido aos gemidos dos que estavam a ressacar, aos gritos dos que deliravam e às constantes discussões. Eram frequentes os roubos e as lutas entre drogados, as cenas de sexo oral à vista de todos, as mortes por overdose e os espancamentos feitos pelos cobradores de dívidas. Quanto estes decidiam matar alguém, arrastavam a vítima para o exterior e davam-lhe um tiro. O mesmo sucedia aos que morriam por overdose: como sacos de lixo, eram atirados pelos moradores para as traseiras do edifício. Duas vezes por semana, uma carrinha dos serviços sanitários que recolhia cães vinha buscar os corpos para serem enterrados em valas comuns. A polícia nunca intervinha pois havia agentes que traficavam drogas ou extorquiam dinheiro a quem as vendia e usavam as toxicodependentes mais novas como prostitutas gratuitas. Além disso, os políticos e a maioria da população opunham-se à demolição de Drogueville por preferirem que existisse um gueto com drogados e marginais longe da cidade.

Em suma, Drogueville eram um local que agradava a todos.

Roman Schwartz estava pálido, tremia, tinha os olhos vermelhos e os lábios rachados. Nas últimas semanas tinha perdido cinco quilos. Não tomava banho há quatro dias. Vestido com um fato de treino cinzento e com uma mochila às costas, ao meio-dia entrou no edifício, tapou o nariz e encostou-se a uma parede junto à entrada. Apesar de frequentar o local há meses, nunca se habituara à fedentina. No dia anterior, tinha combinado com o dealer que lhe fornecia heroína encontrar-se ali à uma hora da tarde. As dores que começava a sentir por causa da ressaca fizeram-no chegar mais cedo, mesmo sabendo que não iria encontrar ninguém antes da hora marcada. Estavam lá outros dealers que lhe poderiam vender a droga ao mesmo preço, ou até mais barata, mas Roman não confiava neles. A maioria adulterava a heroína com substâncias que podiam provocar a morte aos consumidores. Pelo menos duas raparigas que ele conhecia tinham morrido dessa forma.

De repente, Roman vê uma rapariga sua conhecida entrar. É alta e magra, tem o rosto cheio de manchas e os cabelos negros eriçados. Veste calças e casaco de ganga e traz uma bolsa preta ao ombro. A rapariga passa por ele em passadas rápidas, vai evitando os corpos prostrados sem se importar com a sujidade que pisava, até chegar a uma barraca de cartão onde vivia o seu companheiro. Este estava sentado à entrada com a cabeça metida entre os joelhos. Mal a viu, levanta-se e agarra-a por um braço. Começa a gritar com ela e a tentar tirar-lhe a bolsa. A rapariga resiste e grita também. Lutam. Ele dá-lhe um soco que a faz cair. A rapariga fica estendida no chão e o companheiro pega na bolsa, abre-a e retira um monte de notas. Depois, vai à procura de um dealer que lhe venda uma dose de heroína. Entretanto, a rapariga levanta-se sem ninguém lhe prestar ajuda. Tinha o rosto ensanguentado e a roupa suja. Olha para todos os lados até se fixar nalgo. Então, limpa a cara, arranja o cabelo, saca de um batom da bolsa e pinta os lábios. Volta para trás e dirige-se a um homem baixo e gordo com óculos escuros que acabara de chegar. Falam um com o outro. O homem acena com a cabeça e os dois vão para um canto onde não está ninguém. O homem encosta-se à parede e baixa as calças…