O Uruguai é como um anão com uma cabeça enorme, com todo o respeito por anões com cabeças enormes, que também não serão tantos que precisem de ser sindicalizados. A cabeça é, claro!, Montevidéu. Em cerca de três milhões e meio de habitantes, um milhão e novecentos mil enlatam-se na capital e nos seus subúrbios. O que faz com que não seja de admirar que de cada vez que falamos de um uruguaio distinto, ele tenha nascido, inevitavelmente, em Montevidéu, como é o caso de José Antonio Piendibene Ferrari. Veio ao mundo no dia 5 de junho de 1890, em Pocitos, à beira do Rio de La Plata, um lugar em que, nesse tempo, as lavadeiras se juntavam nos areais para esfregarem a sabão azul os lençóis dos senhores ricos e os deixarem, depois, a corar ao sol, tal e qual como na minha infância, no Fojo e no Poço do Conde, quando o Rio Águeda tinha a vida que entretanto perdeu.
Jose era o mais novo de oito irmãos. Os campos baldios em redor da humilde casa de seus pais cedo o atraíram. Foi ali que começou a apaixonar-se pela figura redonda da bola, um ciumento que não queria largá-la sem que, primeiro, a dominasse por completo, a deixasse à mercê das suas vontades e soubesse como nunca permitir que fosse, por sua própria iniciativa, para pés alheios. Aos 18 anos chegou aos Carboneros, o clube dos besuntados a óleo e a carvão que trabalhavam na instalação das linhas de caminhos de ferro uruguaias, e que se chamava Central Uruguay Railway Cricket Club. Cinco anos mais tarde mudou de nome. O clube, não Piendibene: passou a ser o Peñarol, que também é nome de bairro.
Jose vestiu a camisola das riscas pretas e amarelas e nunca mais a despiu. Ficou vinte anos. É, ainda hoje, o jogador que mais tempo serviu a causa mirasol, porque também é assim que lhes chamam: os girassóis. Dia 26 de abril de 1908, contra o French. clube entretanto desaparecido, surgiu como ponta direita. O povo, nas bancadas, deslumbrou-se com o seu jeito tranquilo de ir mantendo a bola nos pés até que, de súbito, num passe luminoso ou num remate inequívoco, oferecia o golo ou marcava-o ele mesmo. Era um menino e, ao mesmo tempo, jogava o futebol dos antigos mestres. Não admira que Jorge Brown, um dos grandes centrais da história da Argentina, depois de ser ver batido pelo Uruguai (3-0) com dois golos de Jose, lhe tenha feito uma vénia respeitosa: «Coño! Eres um muchacho y al mismo tiempo un maestro. Solo pido a Dios para no te enfrentrar más».
Maestro/menino, Piendibene encontrou-se com a prosa e a prosápia de Ricardo Lorenzo Rodríguez, o jornalista seu conterrâneo que faria carreira na Argentina, escrevendo para El Gráfico, sob o pseudónimo onomatopaico de Borócotó. Jose resolvera mudar de vida – deixara a ponta direita para se instalar no centro do ataque e fazia mais golos do que nunca. E então, Rodriguez recitou, enlevado, nas páginas do seu jornal: «Para un peñarolense de verdad, fue el mejor centre forward del mundo y lo seguiría siendo si se entrenara; para un uruguayo, el mejor del Uruguay; para el formidable negro Juan Delgado, ‘El hombre que le inventó el mango a la pelota’; para muchos viejos compañeros de su team, ‘Don José’, con todo el respeto de la expresión; para los argentinos, ‘El maestro’; para Olazar, el mejor director de línea delantera que ha conocido; para mí, el más grande artista del football».
Traduzir mango de castelhano para português é fácil: maçaneta. Piendibene era incapaz de jogar futebol sem tentar criar algo de novo. Quando se entrincheirou entre os centrais, já um pouco mais gordito, logo ele que nunca foi alto nem esticado, dizia que a melhor maneira de abrir as portas para o golo era a de receber um passe direto vindo da sua defesa. Dominava com o peito, ou com o joelho, e recorria ao bombazo. Ou à cortada. Vivia entre a força e a habilidade. A cortada chegava a ser humilhante. Jose no meio da área contrária, rodeado de inimigos, olhava por entre todos eles e via o buraco, espaço único onde a bola poderia entrar.Então rematava devagar, só com jeito, e a bola, como sempre obedecia-lhe. Era golo.
Também se relacionava bem com os calcanhares. Aí recebia o passe, o mais próximo possível do guarda-redes contrário, e deixava que a bola lhe passasse por entre as pernas para depois a desviar com el taco para dentro da baliza. Outras vezes isolava-se e esperava: o keeper vinha enlouquecido em sua direção, com vontade talvez de matá-lo, porque no futebol do Uruguai só não vale acertar botinadas acima das amígdalas, e ele picava a bola com a ponta do pé, fazendo-a entrar por alto, inatingível, frustrante: de zapatilla, como gostam de dizer aqueles aficionados antigos de Montevidéu. Retirou-se em 1928, onze vezes campeão. Ainda era forte, vigoroso, de rosto jovem. Acenou ao longe: «Adiós, muchachos, compañeros de mi vida…». Parecia que Agustín Magaldi tinha gravado, um ano antes, esse tango de propósito para ele.