Eu e a Mara somos inseparáveis, não por vontade própria, mas por estarmos unidas pelas ancas. Temos catorze anos, um metro e cinquenta de altura, cabelos negros, olhos esverdeados, narizes pequenos e bocas com lábios finos.
Geralmente, estamos de acordo com o que fazer e para onde ir, mas, quando isso não acontece, eu imponho a minha vontade. Como a nossa mãe não nos deixou ir à escola, mal sabemos ler e escrever. Ela dizia que éramos um castigo de Deus e só falava connosco para nos dar ordens ou insultar. Um dia, durante a Exposição Pan-americana[1], fugiu de casa e nunca mais soubemos dela.
Uma semana depois, o nosso pai levou-nos ao circo. Havia uma grande tenda com riscas brancas e vermelhas, seis caravanas onde viviam os artistas e duas jaulas onde estavam os leões. Cheirava a algo podre. No entanto, nós não fomos lá para ver o espectáculo, mas sim para nele participar. O nosso pai levou-nos ao circo para nos vender.
– Chamam-se Lili e Mara. São espertas, fazem tudo o que lhes mandar e comem pouco. – disse para o senhor Knut, o dono do circo.
O senhor Knut era um homem atarracado com o rosto vermelho e o cabelo e as suíças cor de ferrugem. Vestia um fato preto com um colete lilás onde se via uma corrente prateada de um relógio. Olhava-nos espantado, arregalando os seus olhos cinzentos.
– Estão mesmo presas uma à outra? Não há nenhum truque?
– Apalpe, apalpe – disse o nosso pai, orgulhoso, apontando para as nossas ancas.
O senhor Knut meteu a sua mão peluda no nosso corpo, puxou cada uma por um braço e abanou-nos até ficar convencido.
– Diabos me levem. Estas criaturas são como se fossem uma só. Quanto quer por estes monstrinhos?
– Por cem dólares pode ficar com elas – disse o nosso pai.
O senhor Knut riu-se.
– Por esse preço posso comprar três macacos. E, como aberração, já tenho a mulher com barbas. Dou-lhe metade.
– Combinado – disse o meu pai. Assine estes papéis e trate-as bem.
Desde esse dia tornamo-nos pertença do senhor Knut e começamos a aprender a ser estrelas de circo. Fomos instaladas na tenda da mulher barbuda, a Sheila, e a primeira coisa que ela fez foi ameaçar-nos.
– Eu sou a atracção principal do circo e isto vai continuar assim. Se fizeram alguma coisa para me prejudicar, racho-vos ao meio.
De seguida atirou-nos com um cobertor rasgado e enxotou-nos para um canto da caravana onde dormimos alguns meses.
A Sheila era uma mulher alta com olhos azuis e cabelos pretos; a sua barba não passava de uns tufos de pêlo espalhados pelo rosto. Deveria ter cerca de quarenta anos – ninguém sabia a sua idade e nunca tivemos coragem de lhe perguntar – e já tinha estado noutros circos antes de trabalhar para o senhor Knut. Ao contrário da nossa mãe, só nos batia quando não lhe obedecíamos. Foi ela quem nos ensinou a estar diante do público pois o nosso número consistia, tão-só, em nos mostrarmos às pessoas.
No dia seguinte acordamos com pontapés dados pela Sheila e o senhor Knut apresentou-nos ao resto da companhia. Conhecemos Sílvio e Zita, o casal de trapezistas que voavam sem rede; Hector, o domador de feras; Peng, o faquir; Nina, a contorcionista; Tico, o palhaço anão; e Madame Rita, a vidente. Sílvio e Zita eram emigrantes italianos, ele tinha o cabelo negro encaracolado, olhos cor de amêndoa e era forte, ela tinha cabelos loiros, olhos verdes e era magra; foram os únicos que nos sorriram e deram um beijo. Hector era careca, tinha metade da cara desfeita pela pata de um leão, um único olho azul e tresandava a álcool; cuspiu para o chão como forma de nos cumprimentar.
Peng era descendente de chineses, tinha olhos e cabelos negros e a pele cor de cobre; fez uma vénia para nos saudar. Nina era negra, tinha olhos castanhos, era quase da nossa altura e pouco mais velha do que nós; apertou-nos a mão sem dizer uma palavra. Tico media noventa centímetros e tinha uma cabeça enorme com cabelos loiros e olhos azuis; aproximou-se de nós, cheirou-nos e fez uma careta. Madame Rita era cigana, tinha os cabelos cinzentos e os olhos amarelados; fez-nos festas na cabeça como se fossemos animais.
Na sessão dessa noite fizemos a nossa primeira apresentação, tendo o senhor Knut decidido que apareceríamos no final do espectáculo. Ele queria expor-nos seminuas, para que toda a gente visse a carne que nos une, mas, como havia o risco de o circo ser fechado por ultraje à moralidade, usamos os nossos vestidos mais curtos.
«Não me desiludam meninas, investi muito dinheiro em vós». – disse.
O circo estava cheio e o público fazia um barulho medonho. Havia um cheiro a suor horrível. Dois focos amarelados iluminavam o centro do recinto e o resto era escuridão. Depois do senhor Knut saudar a assistência e anunciar que iriam ver o maior espectáculo do mundo, entrou em cena Tico. Mal ele apareceu, ao som de uma corneta tocada por Peng, o circo quase vinha abaixo, tamanhas eram as gargalhadas das pessoas. Tico vestia um fato amarelo com bolas azuis, tinha a face pintada de branco, os lábios de vermelho e as pálpebras de preto. Começou por dar cambalhotas para a frente e para trás como fazem as crianças. De seguida imitou animais andando de gatas, batendo no peito com os punhos e emitindo os rugidos – se eu e a minha irmã fizéssemos estas palhaçadas em casa, a nossa mãe dava-nos uma coça.
Por fim Tico tirou um balão do bolso e começou a enchê-lo simulando um esforço tremendo para o conseguir. Esteve nisto alguns minutos – com Peng a soprar mais forte a corneta sempre que ele deixava esvaziar o balão – até que, por fim, disse palavras sem nexo, encheu o peito de ar e fez rebentar o balão. O público riu ainda mais e algumas pessoas atiraram-lhe moedas. Tico apanhou-as, fez uma vénia e saiu de cena em dando saltos ridículos. Toda a gente estava feliz, excepto o próprio Tico que nunca se ria.
De seguida entraram Sílvio e Zita, vestidos com fatos brancos cheios de brilhantes colados ao corpo – e foi então que percebi que Sílvio era o homem mais bonito do mundo. Os trapezistas saudaram o público e depois começaram a trepar por uma escada de corda que os levava até uma plataforma onde estavam dois trapézios. Quando chegaram lá cima, iluminados pelos focos amarelos, pareciam dois bonecos – o público fez silêncio e eu rezei para que nada acontecesse a Sílvio.
Entretanto, cá em baixo, o senhor Knut anunciava que eles eram os únicos no mundo que se atreviam a actuar sem rede, desafiando a morte. Zita foi a primeira a lançar-se no vazio. Primeiro sentou-se na barra como se estivesse num baloiço, depois agarrou-se ao trapézio com as mãos e por fim pendurou-se de cabeça para baixo dobrando as pernas e voou duas vezes para cada lado – o público soltava um ‘’ooh’’ de espanto. Depois foi a vez de Sílvio se lançar no outro trapézio.
Músculos impressionantes apareceram nos seus braços e o seu corpo balançou-se a grande velocidade sobre as nossas cabeças. Cada vez que se cruzava com Zita parecia que ia chocar contra ela, mas os dois passavam rente um ao outro sem nada acontecer. Com os seus fatos brancos e movimentos graciosos, voando nas alturas, já não pareciam bonecos, mas dois anjos soprados por Deus. E, por momentos, vi mesmo Sílvio com um par de asas nas costas, como um querubim bondoso que brinca no céu acima deste inferno onde nós vivemos. Então, num dos momentos em que se cruzavam, Zita soltou-se do seu trapézio, pairou alguns segundos no ar e, quando começou a cair, foi agarrada pelas mãos fortes de Sílvio que a segurava de cabeça para baixo – e o público soltou o maior ‘’oooh’’ da noite.
Tal como eu e a Mara, os dois formavam agora um só corpo com duas cabeças, unidos, não pelas ancas, mas pelos braços. Porém, ao contrário de nós, a morte podia separá-los. Tive então um pensamento mau: Sílvio podia largá-la, vir buscar-nos e, ainda que por alguns instantes, seriamos os três felizes. Mas logo me arrependi, e eles venceram a morte uma vez mais e desceram do céu à terra.
Depois houve uma pausa para se colocarem as grades que protegiam o público dos leões. Então, o senhor Knut anunciou a vinda de temíveis feras africanas que já tinham comido homens. Hector entrou para a jaula em tronco nu com um chicote e uma cadeira e abriu uma portinha por onde saíram dois leões e uma leoa. E as temíveis feras eram animais velhos e magros com o pelo estragado que, mesmo assim, intimidaram o público. Os animais rugiam mostrando dentes amarelados e garras afiadas, mas Hector estalava o chicote e eles recuavam.
De repente, esta cena fez-me lembrar a minha mãe e o meu pai quando discutiam. Ele rugia como uma leoa e ele dava-lhe chicotadas com o cinto até a domar completamente fazendo-a cair ao chão, cheia de sangue, para depois, como lição final, lhe dar pontapés nas costas. Mas estas feras eram mais doceis do que a minha mãe pois Hector não tinha necessidade de as fazer sangrar para que elas se sentassem numa espécie de bancos e ficassem quietas. E pouco mais acontecia do que isto, não se atrevendo Hector a meter a cabeça dentro das suas bocas ou sequer a tocar-lhes – o meu pai era muito mais corajoso do que ele e o circo da nossa casa muito mais perigoso.
De seguida veio Nina, apresentada pelo senhor Knut como a mulher de borracha, com um vestido que parecia o mesmo que Zita usou. Nina dobrou e esticou o corpo de uma forma que não julgava que fosse possível, chegando a levar um pé à boca e a tocar com os calcanhares na cabeça. O público, porém, não se mostrou impressionado pois ninguém lhe bateu palmas.
Então, no momento alto da sua actuação, ela abriu uma caixa de vidro que não teria mais de meio metro de altura e comprimento, entrou lá para dentro, sentou-se e depois torceu o pescoço até enfiar a cabeça entre as pernas – nessa altura Tico entrou rapidamente em cena e fechou a caixa. Ao ver isto recordei-me de quando a nossa mãe nos castigava fechando-nos dentro de um baú durante algumas horas, o que nos obrigava a fazermos as nossas necessidades lá dentro. Mas Nina nem um minuto ficou presa pois pouco depois apareceu Peng, anunciado como um faquir que em tempos havia servido um imperador chinês. Peng, usando apenas umas calças pretas atadas com uma corda, tinha uma tocha numa mão e uma garrafa na outra e ia soprando chamas pela boca como um dragão.
O público voltou a aplaudir e Peng libertou Nina da sua prisão. Então ela foi-se encostar a uma placa de madeira, juntou os braços às coxas e ficou imóvel. Peng abriu um saco que Tico trouxera e tirou a primeira faca. Mostrou-a ao público para que todos vissem o perigo daquela arma, depois voltou-se para Nina, puxou o braço atrás e, descontraído como quem atira uma pedra para um lago, lançou a faca. A lâmina cravou-se a dois dedos do pescoço dela e o público soltou um novo ‘’oooh’’.
De seguida, Peng lançou mais cinco facas que se espetaram também muito próximas da carne de Nina, fazendo percutir a madeira e desenhando o contorno do seu corpo. Aquilo lembrou-me de novo a nossa mãe quando uma vez pegou na faca de escamar o peixe e atirou-a contra o nosso pai, com a diferença de que ela tinha mais pontaria do que Peng e acertou-lhe no peito quase o matando. Então, para terminar o show, Peng pegou num machado e desta vez concentrou-se antes de o lançar. Nina continuava impassível, como se aquelas lâminas que a podiam matar não passassem de mosquitos que zumbiam por perto sem a picarem. Peng atirou o machado, a arma voou rodando sobre si própria, ouviu-se um silvo e, subitamente, o estrondo da lâmina contra a madeira.
O machado cravara-se rente à sua orelha, não a decepando por milímetros. O público aplaudiu entusiasticamente, Nina saiu daquela armadilha de ferros, deu a mão a Peng e juntos, como um casal feliz, fizeram uma vénia. Terá havido um tempo que o nosso pai e a nossa mãe, depois de atirarem facas e copos um ao outro, faziam as pazes e davam as mãos?
Foi então a vez de Madame Rita, apresentada como vidente que comunicava com os mortos, entrar em cena. Apareceu com um lenço preto na cabeça, uma blusa vermelha e uma saia verde que lhe escondia os pés. Fez-se silêncio. A sua figura assustou mais o público do que os leões. As luzes foram desligadas e ela sentou-se diante de uma mesa com duas velas – nos bastidores, Peng tocava um violino.
Aquela luz ténue fazia desaparecer-lhe o corpo e dava ao seu rosto um ar fantasmagórico. Talvez por ela parecer uma criatura do outro mundo, ninguém estranhou que pudesse falar com os defuntos. O senhor Knut convidou então o público a avançar. Um murmúrio percorreu a assistência, mas ninguém se mexeu. O senhor Knut insistiu, dizendo para não terem medo. Pouco depois, um pouco embaraçada, uma senhora de meia-idade toda vestida de preto, levantou-se e foi ter com Madame Rita.
– Queria falar com o meu marido, ele morreu há um ano – disse a senhora.
– Como é que ele se chamava?
– Gabriel Watson.
Madame Rita colocou as mãos nas fontes e começou a chamar pelo defunto com uma voz lenta e arrastada.
– Gabrieeeel, vem Gabrieeeel, a tua mulher está aqui.
A mulher juntou as mãos e começou a rezar.
Madame Rita continuou a chamar pelo morto durante algum tempo até que, de repente, começou a falar com uma voz estranha.
– Quem és tu e o que queres de mim?
O público soltou um novo ‘’ooh’’ e a mulher caiu de joelhos. Madame Rita explicou que já tinha conseguido entrar em contacto com o morto e prosseguiu a conversa, recuperando o seu tom de voz normal.
– Sou Madame Rita e a tua mulher está aqui para te fazer perguntas.
– Estou à vossa disposição – disse com a voz estranha de novo.
– O que quer saber? – perguntou Madame Rita à mulher.
– Pergunte-lhe onde escondeu o dinheiro e se o filho da criada é dele – sussurrou.
– Ele ouviu, aguardemos a resposta – disse Madame Rita com a sua voz normal.
Segundos depois, de novo com uma voz estranha, Madame Rita falou pelo morto.
– O dinheiro foi entregue à caridade e o filho da criada é do padeiro.
A mulher benzeu-se.
– Perdoa-me Gabriel, nunca deveria ter desconfiado de ti – e começa a chorar.
Madame Rita levanta-se, abraça-a e, delicadamente, leva de volta para o seu lugar.
A maioria do público continuou em silêncio, mas algumas pessoas assobiaram.
Ocorreu-me então que também poderia fazer algumas perguntas a Madame Rita sobre a nossa mãe: onde é que ela estava? Por que se foi embora? Será que alguma vez gostou de nós?
Chegou por fim a nossa vez, uma vez que o senhor Knut decidira que na nossa estreia apareceríamos ao lado de Sheila, a mulher barbuda. Fomos apresentadas como as maiores aberrações do mundo, erros medonhos da natureza, umas criaturas algures entre o humano e animal. Então, ao som da corneta de Peng, entramos as três na arena do circo. Sheila vestia uma tanga a imitar pele de tigre para mostrar que tinha corpo de mulher e nós os referidos vestidos curtos para que o público visse o máximo do nosso corpo. E o público desatou a rir como se fossemos palhaços, muito mais cómicos do que Tico, embora não fizéssemos nada de engraçado.
De mão dada com Sheila demos uma volta à arena – e as pessoas iam-nos chamando anormais, bestas e outros insultos. Então o senhor Knut convidou uma pessoa para vir comprovar que éramos autênticas aberrações e vários homens engalfinharam-se para terem esse privilégio. Por fim, entrou na arena um homem gordo com rosto de bebé que tinha conquistado o direito de nos tocar à custa de socos e empurrões, mas que, quando ficou diante de nós, pareceu ter perdido a coragem. E foi Sheila quem lhe pegou numa mão e o fez puxar a sua barba.
O homem começou então rir-se, um riso estúpido como já tinha visto nos deficientes mentais, avançou para nós e apalpou os nossos corpos de cima a baixo, explorando os seios e as nádegas com a língua de fora, babando-se, já pouco importado em comprovar se estávamos presas. Uma vez, um homem que a nossa mãe levou a casa fez-nos o mesmo, meteu a mão dentro das calças e sacudiu-a até mandar um berro. Depois, deu-lhe uma nota e foi-se embora.
[1] 1901