Entre Billy Smith e Emanuel Augustus o meu coração balança. Aviso desde já que, tirando o boxe, muito pouco liga um mamífero ao outro. William Amos Smith, o Billy, nasceu em 1871 e morreu em 1937; Emanuel Ya’kov Burton nasceu em 1975 e ainda é possível encontrá-lo por aí no fundo de uma garrafa de bourbon. A primeira coisa que me fascinou quando comecei a ler sobre Billy e Emanuel foram as suas alcunhas. O primeiro ganhou o apodo de Mysterious Billy; o segundo ficou conhecido como The Drunken Master. É por estas e por outras que o grande Bertold Brecht via no boxe um romance e não perdeu tempo a escrever poemas sobre os lutadores que mais admirava.
Billy, natural do Canadá, foi duas vezes campeão do mundo dos pesos-médios mas tinha uma tendência muito pouco saudável de se meter com gente pouco recomendável. Não tratou de levar para dentro do ringue os maus hábitos que ganhou fora dele. E, assim sendo, teve direito a que lhe chamassem, com uma pompa e circunstãncia própria de Elgar, The Dirtiest Fighter of All Time. Era, decididamente, um tipo com maus fígados. Mal soava o gongo atirava-se contra os adversários e fazia gala de usar todos os truques mais sujos, desde cotoveladas nas costelas a punhadas nas partes moles… Enfim, vocês sabem onde é que eu quero chegar.
Graças à canalha que lhe protegia os costados, os árbitros tinham uma certa tendência em permitir que usasse as suas estratégias infames. Mesmo assim, conseguiu ser desqualificado por comportamento inapropriado em dez combates, número só batido, até hoje, por outra besta de 124 patas de nome Arnol Sheppard, esse sim, verdadeiro merecedor do cinturão que distinguisse o Boxeur Mais Sujo de Sempre.
Muitos, muito anos depois de Billy ter ido fazer tijolo para o cemitério de Multnomah Park, em Portland, no Oregon, Emanuel também ia tendo os seus mazombos episódios de desqualificação, como quando, na defesa do seu título mundial de pesos-médios, em 18 de junho de 2004, face a Tomas Barrientes, decidiu que podia e devia espinafrar a cabeça do árbitro, insultando-o a tão pouca distância que este mal conseguia ver popr entre a nuvem de perdigotos. Só tinha aguentado o título durante três meses e meio, mas ninguém ficou com pena do animal. Era um gajo embirrento e ponto. O público não gostava de Emanuel Augustus, apelido que adotou para substituir o menos vistoso Ya’kov Burton.
Augustus conquistou à custa de murros certeiros, fortes e bem aplicados, o direito de ser considerado um dos mais duros lutadores do seu tempo. Passaram a chamar-lhe Drunken Master por causa do filme com o mesmo nome, datado de 1978, e protagonizado por Jackie Chan, com muitos pontapés na tromba e poucos motivos de interesse. Não que Emanuel fosse um pinguço de pai e mãe, sempre a embirrar com copos cheios – que não descansava enquanto não os visse vazios – e copos vazios – que não descansava enquanto não os visse cheios outra vez -, mas tinha uma predileção especial pelo seu whiskey e, de tempos a tempos, ingeria quantidades não diria federais, como Vinicius, mas suficientes para fazer baixar o caudal do Mississipi. Na verdade, o drunken boxing é uma das modalidades das artes marciais chinesas que nos entravam pela casa dentro no tempo d’Os Jovens Heróis de Shaolin, mais o Ling Chung e o Liang Shan-po e o diabo a quatro, e que se distingue por exibir movimentos que dão a sensação de alguém bêbado antes de, subitamente, atacar a jugular do inimigo. Pois, pois… não se esqueçam dessa velha sabedoria oriental: «Don’t despise the snake because she as no horns. Who knowns she becomes a dragon!».
Tal como sucedia com Billy, Emanuel colecionou a sua quantidade razoável de inimigos. Um deles foi um jovem polícia de 21 anos de Baton Rouge, Christopher Stills, que certa vez se sentiu intimidado pelo à vontade com que Augustus lhe prometeu um par de chapadas quando o apanhasse desfardado. Stills foi mais rápido e mais velhaco. Na noite de 13 de outubro de 2014, seguiu-o durante umas horas e acabou por apanhá-lo, de costas, num beco mal iluminado. Com um tiro de pistola lenhificou-lhe a nuca e atirou-o para a cama de um hospital a pão e laranjas. Quando voltou a si, depois de ter estado mergulhado num estado comatoso bastante prolongado, Emanuel, não teve dúvidas em acusar Christopher da pulhice cobarde, mas, por falta de jeito ou por desinteresse, a investigação não foi longe e o caso acabou arquivado por falta de provas.
A sorte do agente da autoridade abusador é que o golpe deixou Augustus em muito mau estado e com os movimentos significativamente reduzidos. Os seus jabs e os seus uppercuts passaram à história. Vivendo em casa da irmã, tornou-se um indigente. Não, Christopher não saberá nunca o tamanho do rancor do Drunken Master. Ele já não tem força para erguer o punho e deixá-lo cair sobre o patife com a fatalidade de um raio de Brownsville, quando as tempestades assolam a sua terra natal.