Brasil. Eleições são ‘cocktail explosivo’

‘Setores das forças armadas estão sendo instrumentalizados’, alerta Oscar Vilhena. E o Brasil está cheio de armas e polícias militares de lealdade dúbia.

Num Brasil profundamente dividido, o anúncio de que militares farão a sua própria contagem paralela dos votos foi recebido com grandes receios. Boa parte dos brasileiros teme que Jair Bolsonaro siga o exemplo do seu amigo Donald Trump – estando já a preparar o terreno para alegar fraude eleitoral, levantando dúvidas quanto ao voto eletrónico – e incentive uma insurreição. Com a diferença de se tratar de um país ainda mais violento, onde o espetro da ditadura militar ainda está bem presente, estando a tensão a agigantar-se com a aproximação da primeira ronda das eleições, a 2 de outubro.

«Politicamente, sem dúvida que há setores das forças armadas que estão sendo instrumentalizados por Bolsonaro para criar desconfiança sobre o resultado das urnas», alerta Oscar Vilhena, professor de Direito Constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, à conversa com o Nascer do SOL.

«A preocupação dos que lutam por democracia é que, no momento em que os resultados sejam proclamados, o que no Brasil ocorre invariavelmente no dia da eleição, um grupo de militares diga que esse resultado não bate certo», explica o professor. E, segundo as sondagens, tudo indica que o resultado proclamado seja uma vitória do petista Inácio Lula da Silva, que lidera com 44% as intenções de votos, segundo o Ipec, seguido de Bolsonaro, com 31%. São números semelhantes aos de todas as restantes empresas de sondagens, exceto o Instituto Paraná Pesquisas, que apontou para um empate técnico após aceitar contratos com o Governo federal, uma prática bastante mal vista no setor, avançou a Folha de S. Paulo.

Não fosse este contexto de desconfiança quanto ao voto eletrónico provocado pelo Presidente, a notícia da contagem dos votos paralela dos militares não seria tão grave quanto poderia parecer à primeira vista, avalia Vilhena.

Nas eleições brasileiras, em vez de se colocar um voto em papel em urna, digita-se o número do candidato escolhido numa máquina. «Para o sistema ter integridade, cada urna não está conectada ao resto do sistema. Elas expelem um boletim de urna e por outro meio é comunicado ao tribunal regional eleitoral, que transmite ao Supremo Tribunal Eleitoral», explica o professor. O que os militares pretendem é ver se cada boletim corresponde ao que é contado. Algo que pode ser feito – é recorrentemente feito – por quaisquer instituições da sociedade civil, partidos ou até cidadãos individuais.

O assustador é viver-se neste clima de medo, onde a participação de militares se torna tão sinistra. «O sistema eleitoral brasileiro é totalmente informatizado há 25 anos. E os diversos setores da sociedade brasileira colaboraram para a construção desse modelo, inclusive os militares, sem nenhum atrito», frisa Vilhena. «Estas são as eleições mais tensas que nós já tivemos. E olhe que a anterior já foi tensa. Desde 2014 tem sido um crescendo de tensão». 

Não há condições? 

À partida, por mais que Bolsonaro o possa querer, não parecem estar reunidas as condições que permitiram às Forças Armadas brasileiras dar o golpe de Estado de 1964, que derrubou o Presidente João Goulart, inaugurando mais de duas décadas de ditadura.

Desta vez, tudo indica que não haveria apoio de Washington, tendo a embaixada americana explicitado num comunicado que «as eleições brasileiras, conduzidas e testadas ao longo do tempo pelo sistema eleitoral e pelas instituições democráticas, servem com modelo para as nações do hemisfério». E até entre as elites económicas parece haver receios, tendo manifestos recentes em defesa da integridade eleitoral sido subscritos por banqueiros e empresários de destaque.

«Como é que se dá um golpe contra o trabalho e o capital ao mesmo tempo?», questiona Vilhena. «O contexto mudou muito em relação a 1964», garante o professor de Direito Constitucional. «É evidente que, se os militares entram no jogo eles desequilibram, como em qualquer país do mundo», ressalva. «Aí é muito difícil conter».

No entanto, apesar de gente de farda ter crescente influência no Estado brasileiro – sob a presidência de Bolsonaro, ele próprio um capitão na reserva, o número de postos civis no Governo federal ocupados por militares mais do que duplicou, ultrapassando os seis mil em 2021, segundo os dados do Tribunal de Contas da União – e da ambiguidade de alguns setores castrenses, Vilhena vê indícios positivos no que toca à conduta das Forças Armadas.

Até se sentiu isso nas celebrações dos 200 anos da independência do Brasil, a 7 de setembro, data do famosos ‘grito do Ipiranga’, considera o professor. «Em Brasília, naquele palanque onde estava o Presidente de Portugal, tão constrangido», diz, interrompendo-se para soltar uma gargalhada. «Não se via nenhum comandante das tropas, o que é incomum. Estava o Presidente, o ministro da Defesa, mas não tinha os generais, que de facto comandam. Isso parece-me bastante relevante».

Isto apesar de toda a polémica em torno do bicentenário, tendo Lula acusado Bolsonaro de o usar «como instrumento de política eleitoral», fazendo das celebrações uma espécie de comício bolsonarista, ao som de salvas de tiros e debaixo de espetáculos da força aérea. Aliás, o próprio Tribunal Superior Eleitoral veio à praça pública no dia seguinte, considerando por unanimidade ter havido abuso de poder político e económico, proibindo o Presidente de divulgar material de propaganda relacionado com as comemorações.

«Noto que o Presidente faz um assédio às cúpulas militares, busca incitá-los contra o poder civil, mas não há uma mobilização de facto. O que não significa que os generais na reserva não falem coisas impróprias», avalia. «Ou que você não possa ter curto-circuitos. Nesse aspeto, preocupa-me mais a polícia militar».

Civis armados, milícias, PM incerta 

Nos cálculos quanto ao potencial de violência pós-eleitoral, entra outro fator, imprevisível, da liberalização do porte de arma através de decretos de Bolsonaro. Algo aproveitado por muitos dos seus apoiantes, que acumularam autênticos arsenais, sobretudo em torno dos clubes de tiro, os chamados CAC (Caçador, Atirador e Colecionador). Aliás, um dos filhos do Presidente, Eduardo Bolsonaro, até já convocou publicamente os membros destes clubes para apoiar a campanha. «Você comprou arma legal? Tem clube de tiro ou frequenta algum?», escreveu este deputado federal no Twitter. «Então você tem que se transformar num voluntário de Bolsonaro».

Estes clubes de tiro «agregam uma extrema-direita bastante radicalizada, que transita com as suas armas. Porque quem faz parte pode portar a sua arma entre a sua casa e o clube de tiro», explica Oscar Vilhena. «Os CAC simplesmente passaram a ficar abertos 24h, isso mudou o cenário brasileiro. É ameaçador, há uma falta de controlo enorme».

«Isso se conjuga com o meu temor, de que se houver um conflito no dia da eleição as polícias militares não estabeleçam a ordem, por estarem conjugadas aos grupos de extrema-direita», receia. «Não acredito que haja algo assim em São Paulo, o comando da polícia aqui tem dado manifestações muito claras de que a polícia não é passível de manipulação», acrescenta este professor, antigo Procurador do Estado em São Paulo. «Mas temos problemas em vários estados. No Ceará, na Baía, no próprio Rio de Janeiro, vemos comandos da PM mais incertos». Na prática, um tal cenário seria «um cocktail perigoso, que aparece de maneira mais forte no Rio de Janeiro». Exatamente a cidade que sempre foi feudo do clã Bolsonaro, que é há muito associado às milícias do oeste do Rio de Janeiro.