Casos, recados e vida alheia

Que país estamos a deixar para as gerações futuras? Tem ouvido falar disso? Eu também não, mas o futuro da minha filha interessa-me muito mais do que casos, recados, e vida alheia!

Vivemos, há já alguns anos, numa democracia que confunde transparência com populismo e que, há muito, caiu no sensacionalismo da suspeição permanente. Se olharmos para os títulos dos jornais, Portugal é um país no qual:

• O marido da ministra é um jurista respeitado, mas, se a mulher agora é ministra, não pode ser contratado pelo Estado.

• O marido da ministra é empresário e recebeu fundos comunitários, passou a ser suspeito.

• O pai do ministro é empresário, e o filho até tem uma quota na sociedade, teve contratos com o Estado: só pode ser ilegal.

• O novo ministro tem uma empresa onde ainda é gerente, apesar de estar em prazo de sair da gerência, é muito suspeito.

• A mulher do ministro é bastonária de uma ordem profissional no setor daquele ministério, incompatível.

• O ministro foi presidente de uma petrolífera, só pode ser um barão do petróleo que afronta a sustentabilidade.

Todos estes casos, ou não casos, são rios que desaguam no oceano da ditadura do politicamente correto, onde tudo é tratado no todo como igual.

A ex-ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, disse recentemente, numa entrevista, uma frase lapidar, à qual todos os políticos (e todos os cidadãos) devem estar atentos: «Qualquer dia ninguém quer ser Padre desta paróquia». O fim será esse mesmo. Tratar todos os cidadãos que, com sacrifício pessoal, e porque certamente acreditam que têm algo para dar à sua comunidade, como pilantras, apenas serve para afastar quem vem por bem.

Quando alguém entra na vida política sabe que estará sujeito a uma dose suplementar de escrutínio, corretamente porque há um dever de transparência a ser respeitado. Todavia, querer, para lá do escrutínio, partir de um pressuposto de presunção de suspeição ou de culpabilidade sobre todos os que estejam na política, é mortífero para o regime. As pessoas têm vida e têm direito a ter vida. Se, com o exercício de cargos públicos, perderem o direito à sua honorabilidade, o mais normal é que aumente, ainda mais, a dificuldade de captar quadros qualificados para a política. Com isso, mata-se a política e mata-se o regime.

Há alguns dias, ouvíamos na televisão um comentador a referir-se a um ex-primeiro-ministro e um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros pelos nomes próprios e, no mesmo comentário, referir-se a um embaixador português como o ‘senhor embaixador’. O diabo está sempre nos detalhes. Certamente que o comentador não terá percebido como o seu subconsciente o armadilhou, deixando transparecer o respeito que tem pelo ‘senhor embaixador’, e o pouco respeito que terá pelo ex-primeiro-ministro e pelo ex-ministro dos negócios estrangeiros. É assim que o país está!

Temos escrito, recorrentemente, sobre a necessidade dos partidos centrais do regime trabalharem em conjunto as ditas ‘reformas estruturais’ ou os ‘acordos de regime’. Só trabalhando em conjunto é possível estabilizar estas matérias e evitar que, um ou outro, caiam na tentação populista de passar por quimicamente puros, evitando populismos que, lenta, mas consistentemente, corroem a legitimidade dos poderes públicos.

Deixemos, pois, de discutir a espuma dos dias e questionemo-nos sobre o essencial: que país estamos a deixar para as gerações futuras? Tem ouvido falar disso? Eu também não, mas o futuro da minha filha interessa-me muito mais do que casos, recados e vida alheia!