Se tivesse tido a desdita de me plantarem um nome como o de Juan de Urruela y Morales Palomo de Ribera y Valenzuela não sabia o que fazer com ele. Ou, pelo menos, sabia que o melhor era dizê-lo o menos vezes que fosse possível e pedir aos amigos que me tratassem só por Juan (ou por tu) e esquecessem o resto. Claro que um sujeito cujo nome ocupa quase metade da lista telefónica não aparece na face da Terra por geração espontânea. O bisavô do mamífero era uma figura com o aplomb de um Grande de Espanha, terratenente em Retes de Llanteno, Álava, uma das três províncias que compõem o País Basco, e que foi acrescentar mais umas moedas de ouro à sua fortuna na América Central.
No geral a gente fina torce o nariz a jogadores de futebol e atribui-lhes a categoria de parolos ou de broncos e olha para eles por cima do ombro como para se jogar a bola, bem ou mal, fosse obrigatório ter nascido numa favela ou num bairro de barracas. Pois, contra tal preconceito, aviso desde já que fui investigar a árvore genealógica de Juan de Urruela y Morales Palomo de Ribera y Valenzuela e, depois de não ter percebido nada de jeito, fiquei a saber que é antepassado de uma senhora chamada Ágatha Ruiz de la Prada y Sentmenat, muito considerada no meio da alta costura, confessando eu aqui a minha total ignorância entre o que distingue a alta da baixa costura (será a algibeira-alta e a algibeira-baixa?). No fundo, limitei-me a confirmar que Juan, acho que ele próprio gostaria que o tratasse assim (não é, pá?), era rico e gostava à brava de futebol, de tal maneira que até foi à baliza no primeiro jogo da história do Barcelona (o gajo tinha dinheiro, até podia ser o dono da bola, se foi para a baliza foi porque quis, ou não?), disputado no dia 8 de Dezembro de 1899 no Velódromo de la Bona Nova, frente a uma seleção da colónia inglesa de Barcelona. Os ingleses jogavam melhor, pois então, pelo menos sabiam as regras mais básicas já que inventaram o jogo, e ganharam por 1-0. Mas o herói do confronto foi Juan. No La Vanguardia, o jornalista destacado para cobrir o acontecimento, nessa altura sem nada de sensacional – se calhar até mandaram um estagiário – publicou com o devido destaque: «No puedo terminar sin hacer especial mención de un punto disputadísimo que salvó el “goal-keeper” del Barcelona Club, señor Urruela, quien fue saludado con un aplauso por parte de los asistentes, entusiasmados ante la vehemencia con que fue defendida la entrada de la pelota».
Já não era Juan para aqui e para ali: era señor Urruela. Ou seja, o primeiro guarda-redes do Barcelona não era apenas um fidalgo como era guatemalteco – nasceu na Cidade da Guatemala no dia 29 de janeiro de 1881. E mais ainda: era marquês! Ou melhor, cada coisa a seu tempo. Ainda vestiu a camisola do Barça em mais três partidas, nos dias 24 e 26 de Dezembro, contra o Catalá primeiro, numa vitória por 3-1, e de novo contra os ingleses de Barcelona, desta vez numa desforra por 2-1. Não consegui saber o motivo que levou Juan a jogar no meio-campo em vez de à baliza, como na estreia. Talvez tenha achado que não era muito divertido estar ali sozinho, debaixo de uma trave e no meio de dois postes, à espera que o diabo dos ingleses viessem por aí abaixo dar-lhe cabo da pachorra, obrigando-o a defesas de estalo como a descrita pelo jornalista do Vanguardia. Seja como fôr, o Barcelona parece ter ganho algo com a elegância com que o aristocrata vindo lá dessa encantadora Guatemala que se espalha em florestas magníficas e tem uma daquelas cidades que fazem parte do currículo básico dos grandes viajantes, Antigua, pérola do departamento de Sacatepéquez, se apresentou no domínio da bola e dos tempos do jogo. Juan era um señor. E foi também um señor no dia 6 de Janeiro de 1900 quando regressou à baliza para sofrer os três golos da maldita colónia inglesa que parecia ter gosto em apepinar os seus vizinhos barceloneses.
Dezasseis anos depois, Afonso XII, o rei que gostava de futebol, devolveu a Juan de Urruela y Morales Palomo de Ribera y Valenzuela o título de marquês de San Román de Ayala, recompensando por entreposto antepassado um título que fora extirpado a Domingo de Retes y Largacha. Nessa altura já o nosso Juan (a este ponto, de tanto falar no bicho, começo a abusar de uma certa intimidade, perdoem-me o excesso) tinha deixado o futebol de vez. Tornara-se, com o tempo e com as distinções de que fora alvo, um finório, se entendem o que quero dizer. Andar a raspar joelhos em campos de terra batida era muito plebeu e os seus amigos mais próximos deixaram bem clara a sua posição sobre a matéria. Tinha um orgulho muito íntimo do gesto que o rei tivera para com ele e todas as imagens que se lhe conhecem entretanto mostram-no em traje de luces e não de calções e botas de travessas. Ser guatemalteco também lhe agradava de sobremaneira. Dava um toque exótico à sua figura janota. Embora não fosse, como sabemos, um título. Nada de confusões, como as do personagem do Assis Pacheco, um filho que perguntava ao pai: «Quem é que vale mais? Um marquês ou um dinamarquês?».
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