O coração mole do Nariz de Ferro

Caju foi um jogador extraordinário – tão extraordinário que viveu entre Pelé, Tostão, Chico Buarque, Bob Marley e Salvador Dalí

O cognome ficava-lhe a matar. Na verdade, o nariz de Caju parecia um ferro de engomar. Nasceu pobre como Job e viria a ter a sua recompensa por nunca ter blasfemado em queixas contra o Senhor. Desde garoto que foi crente. Fedelho inquieto da favela da Cachoeira, em Botafogo, no Rio de Janeiro, onde nasceu no maldito dia 16 de junho de 1949. Pelo menos o pai, mestre de obras, achou o diabo do dia tão maldito que saiu de casa para nunca mais voltar, deixando-o sozinho com a mãe e a irmã. Dormia quase todas as noites em casa de um amigo, Fred, que começara a dar uns pontapés no Flamengo. Fred gostava de Paulo Cézar, o pai de Fred gostava de Paulo Cézar, a mãe de Fred gostava de Paulo Cézar e Paulo Cézar gostava de família de Fred. A mãe de Paulo Cézar nunca tinha dinheiro para feijão com arroz: lá em casa, a janta era ou feijão ou arroz, nunca os dois juntos. Fred tinha 11 anos, mais um do que Paulo Cézar, e pediu ao pai: «Paiê! Adota ele!» Foi adotado. A sua vida mudou para sempre.

O pai de Fred era treinador de futebol e aceitou o cargo de seleccionador das Honduras. Uma vez, quando estava no aeroporto de San Salvador, à espera de um avião para Tegucigalpa, um brasileiro curioso perguntou-me: «Para onde cê vai?» e Eu. «Tegucigalpa». Haviam de ter visto o ar horrorizado do hoem: «Tegucigaupa???!!! Cê vai deliberadamentchi pra Tegucigaupa???!!!». Fui. E muito antes de mim, Paulo Cézar, que tinha o apelido de Lima mas ficou com a alcunha de Caju, também esteve deliberadamente em Tegucigalpa e jogou futebol por lá. Futebol do bom. Paulo Cézar foi um dos melhores de todos os tempos e ponto final. Tornou-se, mais tarde, um bêbado incorrigível, um pinguço de cair com a cara na sarjeta. Mas nunca enquanto jogou futebol. Mantinha acesa na memória a frase que o pai adotivo lhe ensinou: «Ele nos dizia que o dinheiro ia embora com cigarro, farra e mulheres. Fiquei no meu pedaço, tranquilão, jogando a minha bolinha e me mantive fora de sarilhos».

Livrou-se de sarilhos e teve uma vida boa. Recusou a naturalização hondurenha porque queria ser campeão do mundo pelo Brasil e foi-o na melhor selecção de todos os tempos: a do Mundial de 70, no México. Jogou no Flamengo, no Fluminense, no Botafogo, no Vasco da Gama, no Grêmio, no Corinthians e no Marselha, lá da França. Tinha dinheiro como carraça em cão vadio. E gostava e encher aa boca cm aquilo que comprava: «Trouxe o surf, dos Estados Unidos. Tinha um apartamento no Leblon, em 70, importei uma Fiat Spider 174, abóbora e preta, da Itália, tirava onda pelas ruas do bairro e também colecionava quadros de Portinari, Picasso, Monet, Renoir, van Gogh e Salvador Dali». Não, Paulo Cézar não era nenhum pacóvio. Dos Estados Unidos, onde esteve numa longa digressão com a seleção brasileira, trouxe também o cabelo tingido de ruivo, como os Black Panthers, apologistas do poder negro. Foi por causa do raio do cabelo avermelhado que começaram a chamar-lhe Caju.

Paulo Cézar Caju adorava música. Era amigo de toda a gente que compusesse um samba, uma bossa nova ou um reggae e por isso não admira que apareça em fotos aos molhos acompanhado por Chico Buarque ou Bob Marley, que gostavam por seu lado tanto de bola como ele de balançar a anca na praceta. «Eu não era ‘negro sim senhor’. Era negro de bom gosto, barriga barra de chocolate, calça boca de sino, black power». Isto foi antes de se dedicar furiosamente, durante quinze anos, ao álcool e à cocaína. Também foi craque nisso. Tal e qual como tinha sido no futebol. Ou até melhor ainda, de tal forma se desgraçou perante toda a família e amigos que já não podiam nem vê-lo. Mas Paulo Cézar tinha um nariz de ferro e um coração mole. Por causa de uma paixão shakesperiana, abandonou os vícios e nem mais uma cachacinha emborcou na hora do cérebro começar a ficar embaciado.

Se foi em França que se ligou aos maus vícios, querendo passar por um monsieur de sociedade bebedor de champanhe ao pequeno-almoço, viu dois autores brasileiros, Roberto Corrêa e Jon Lemos, encaixarem-no de vez na história da Música Popular Brasileira. Cantava o Trio Maravilha: «Faltavam só cinco minutos pra terminar o jogo/E o adversário fazia uma tremenda pressão/Sofria como um louco com o rádio colado ao pé do ouvido/Mas a nossa defesa é segura, é mesmo de seleção/Meu time bem armado, tranquilo, era final, era uma decisão/Até que o juíz apitou falta a favor do ‘mengão’/Paulo César prepara o seu chute fatal/Na barreira confusão é geral /Atenção (thururu thururu thuthu)/Preparou (thururu thururu thuthu)/Correu (thururu thururu thuthu)/E chutou/É gol…/Que felicidade!/ gol o meu time é alegria da cidade…». Agradeçam tanta alegria ao Nariz de Ferro…
afonso.melo@newsplex.pt